terça-feira, março 21, 2006

Primavera



«– Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira?

O que foste fazer! O malandro do pitoniso, se há pouco foi cruel, desta vez requintou.

– Cucu… Cucu… Cucu… Cucu…

Parecia uma ladainha! A lengalenga não parava mais. Ou de propósito, ou porque o mundo, naquele instante, era um orfeão aberto, o ladrão dava mais anos de solteira à rapariga do que estrelas tem o céu.

Desapontada, a cachopa regressou às ervas daninhas do lameiro. E, num amuo justificado, deixou correr as horas. A seu lado, comprometida, a Isaura, que tinha garantido o noivado a curto prazo, falava, falava, sem conseguir adoçar-lhe no espírito o fel da desilusão.

E quando a noite se aproximou, disposta a selar com negrura aquela tristeza humana, foi preciso que Farrusco, o melro, novamente solidário com os direitos da moça, saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo céu parado e quente uma segunda gargalhada.

Discordância de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que toda ela ressumava, e sorriu.

Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria do melro. Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do milhão, passou pelas penas luzidias do Farrusco, e foi bater como um castigo no ouvido desafinado do cuco.

Um segundo a natureza esteve suspensa daquela gargalhada.
A vida homenageava a vida.

Depois continuou tudo a cantar.»

Miguel Torga in «Bichos»

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