«Quem de nós falará aos homens que hão-de vir
quando o grande clarão encher de luz
e pasmo as nossas bocas?
E como?
Que língua entenderão eles?
Que símbolos, que sinais, que apagados murmúrios,
lhes falarão de nós,
desta fluida e versátil multidão
destes seres que aparentam rosto humano
e como tal comovem,
mas que olhados do alto são lepra do planeta...»
António Gedeão
A caça fez parte da minha vida. Sempre.
Sem escolha, nasci naquele país longínquo, naqueles tempos longínquos da 2ª Grande Guerra.
Quando dei fé de mim, quatro, cinco anos, onde posso situar uma ou outra lembrança, a caça está presente. Nas fotografias resgatadas à descolonização, mal posso saber como, tenho registos da minha alta infância; porém não possuo, dos meus filhos, mais do que aquilo que pude aqui recuperar da família para quem enviava uma ou outra foto. Perdi, como tudo o resto, esses documentos preciosos.
Mas, dizia eu, a caça está presente, eu estou presente entre a caça. Caça era uma palavra que me fazia vibrar, porque representava sempre excitação, alegria, amigos, conversa, comunicação, enfim. Os amigos da casa caçadores eram sempre os mais divertidos, deixavam as crianças participar nas conversas, contavam histórias entre gargalhadas – parece que há um provérbio que assegura que um dos momentos em que os homens mais mentem é após uma caçada... – novos e velhos tinham peripécias que escorriam pelas noites mornas, alongando os serões.
Das caçadas com os amigos resultavam sempre almoçaradas de bifes de lombinho grelhados com gindungo, acompanhados de enormes e suculentos cogumelos (kema eram os melhores e trazidos também pelos caçadores no início da época das chuvas, ali por Setembro…), arroz de pato no forno, perdiz estufada com ervilhas e ovos de pomba escalfados, pernas de nunce ou chissóvio assados também no forno enorme de lenha.
A preparação das grandes caçadas anuais era sempre rodeada dum ritual que me encantava. A ida ao Sul de Angola, para a espera aos elefantes, determinava o planeamento cuidadoso dos oito dias normais de estadia. Os companheiros habituais eram o meu pai, meu tio Kamenino, o tio Albino da Cangonja, e o nosso comum primo Mim, que baptizou o «cesto mágico» de meu pai. E a este propósito havia sempre, no regresso, estórias divertidas para contar, entre gestos e gargalhadas que nunca vou esquecer. Era um pequeno cesto de verga, que meu pai conservava longe dos olhares, e do qual, nos últimos dias, quando os mantimentos comuns escasseavam em qualidade, surgiam acepipes inesperados, pois meu pai reservava um cuidado especial na composição do seu conteúdo. Não faltava aí o bom presunto, queijo da serra, umas garrafas de vinho e uns enlatados especiais. Era ainda tempo de limpar muito bem a sua espingarda, uma 10-75, arma de bala especial que apenas era usada nessa altura, passando o resto do ano embrulhada em massa lubrificante. As caçadas nos terrenos da fazenda, já tive oportunidade de as referir aqui, eram precedidas de longas conversas ao fim de tarde, frente à casa; longos conciliábulos entre meu pai e os sobas para decidirem, com a aprovação de todos os presentes, em círculo, do melhor dia para o gebo, a melhor oportunidade para o início da queimada.
Espingardas, convivi com elas desde a infância. Estavam sempre descarregadas, mas sabia que não podia pegar nelas sem ser na presença de meu pai. Uma vez única experimentei a caçadeira em que peguei vezes sem conta, a 22 LONGO que ficou depois para meu irmão; tinha dois canos, um ao lado do outro. A de meu pai tinha os dois canos sobrepostos, era linda, a coronha tinha uma protecção na ponta, a culatra era toda gravada com figuras de patos num lago cheio de canas, a argola em volta do gatilho também. A limpeza dos canos era obrigatória à chegada da caça e constava de um serviço meticuloso: havia um estojo com umas peças longas e finas de metal amarelo que enroscavam umas nas outras para dar o comprimento necessário, na ponta duas peças do tamanho de cartuchos alternavam, uma para limpar como que raspando os canos, e finalmente uma outra para limpar o pó.
Todas as armas de caça e pistolas que havia na casa de meu pai, foram entregues, já nos anos 70, a um dos três movimentos (ditos) de libertação que conviviam na terra já devassada pela guerra, à FNLA, que ocupou a casa onde cresci em Nova Lisboa, na altura desabitada largos dias porque minha mãe, viúva, passava longas semanas na fazenda.
Esta parte não quero lembrar.