domingo, dezembro 30, 2007

Dimensão



De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinícius de Morais



Um dia de cada vez, sem olhar o calendário, sem olhar o espelho, sem olhar a natureza quieta, com a vida de mansinho a fervilhar por dentro dos troncos sem folhas.

Só a cadela além, do outro lado da rua, presa na corrente pesada, deitada de costas, a colher o calor do sol sobre o cimento, de patas erguidas. Aqui a toalha estendida no varal, a toalha bordada pela Mãe, as flores coloridas num desenho irregular sobre os quadrados do adamascado cru. Os guardanapos. O saco do edredão que faz esquecer os lençóis de bilros que não se usam mais. As azeitonas que restam, algumas ainda verdes. A magnólia cheia de promessas. A abóbora feia, torta, que ao primeiro golpe acende uma coloração de gema de ovo esplendorosa.

O silêncio da hora da sesta.

Não sei se o destino existe. Não sei também se somos nós que o determinamos, seja ele qual for. Sei que somos nós que escolhemos os destinos nas encruzilhadas da vida. E são tantas. A senda que nos parece certa numa determinada altura, porque a mais fácil, a mais plausível, a mais natural, foi um logro. Mas percorreu-se. Nem vale a pena voltar para trás, apenas procurar uma nova encruzilhada e arrepiar caminho. Olhar o trilho do sol e enquadrar o novo espaço com o nascente e o poente. Olhar os seres que cruzam os céus, os mares, ver como seguem a rota dos seus antepassados. Quem sou eu? Partir de onde vim e aprender com o que já percorri. Quero o fulgor do sol? O calor do deserto? A alvura da neve?

Bater as asas e deixar-me levar pelas correntes, dissolver-me no azul. Do céu. Do mar. Perder o horizonte.

Passar para a outra dimensão.

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Noite de Natal

«Mais la plus belle de toutes les étoiles, maîtresse, c’est la nôtre, c’est l’Étoile du Berger, qui nous éclaire à l’aube, quand nous sortons le troupeau, et aussi le soir, quand nous le rentrons. Nous la nommons encore Maguelone, la belle Maguelone qui court après Pierre de Provence (Saturne) et se marie avec lui tous les sept ans.

– Comment ! berger, il y a donc des mariages d’étoiles?

– Mais oui, maîtresse.»

Alphonse Daudet




– Sozinha aqui na fogueira? A matar saudades, ou quê?

– Nada disso. Estava a ver se lobrigava daqui a Estrela Polar…

– Cuidado, prima! «Nã fiar no céu estrelado, quando o grelo sai do nabo!» Nã conhece este provérbio?


Não conhecia não senhor. E ele tinha a razão consigo, que a chuva não se fez esperar no dia a seguir.


O Leonel é o guardião da fogueira.

Ele a acende todos os anos para a Consoada e cuida por que não esmoreça, arrastando com uma grande forquilha aqueles toros e raízes enormes que lhe mantêm o coração de brasa, apesar da chuva. Os ajudantes variam, ausentes os homens mais velhos que já não tornam, ou os mais novos que demandaram outros fogos mais longe, nem sempre presentes.

O Leonel é o mais novo dos primos – da nossa geração – que partilham desde há décadas o calor e a harmonia desta labareda em cada Natal.

Ribatejano dos quatro costados, de poucas falas, amigo, ele conhece as saudades de todos os que se rolam à fogueira e param o olhar nas chamas, os clarões de fogo que trazem os rostos de outros natais. Nós nos confessamos a ela e ele conversa com a fogueira. Pelo menos assim parece.


Da geração que se segue para manter a tradição, os sorrisos que nos dão alegria.

E a mais nova é a filha do Leonel.


sábado, dezembro 22, 2007

A Consoada


Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe:

– Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também.

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas, crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.

– É servida?

A santa pareceu-lhe sorrir outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga



terça-feira, dezembro 18, 2007

Sinestesia


«O amor, a amizade e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara, 
Bens deste mundo, que o mundo
Me levara
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixado só, nulo, atónito, 
A mim, que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia…»
José Régio



Quero entrar na serenidade do tempo que a quadra me proporciona, mas a angústia prevalece.

Não consigo criar empatia com esta natureza sem viço, as folhas sem tom, tristes, caindo doídas, os ramos negros de humidade nas árvores, esta morrinha a carpir a saudade dos que me deixaram nestes outonos.

Sei, sei! Que a Idade Média não foi um tempo de trevas porque possibilitou o Renascimento. Sei que é preciso esperar a manhã num sono quieto, sei que a natureza descansa mas não dorme. As crias desenvolvem-se no ventre dos troncos escuros, como os ursos procriam na profundeza dos gelos. Por enquanto.

Até os pardais deixaram os telhados, não os vejo nem ouço, nem me recordo de outro Inverno com eles ausentes. Deixaram campo aberto aos piscos que debicam as azeitonas maduras, já vi uma ou outra arvéola de cauda balouçante e o melro, sempre presente. Vivo, ladino, o bico amarelo espalhando o cascalho à procura do sustento, mal o dia aponta, ainda a geada cobrindo a relva.

O Natal chegando devagar, já sem o sabor de outrora, da azáfama dos dias ansiados por cada ano longo e demorado, a seira cheia de figos a anunciar os sonhos e rabanadas, a Consoada enfim, os presentes no Dia de Natal pela manhã cedo.

Agora o ano é mais curto, só os sonhos persistem, sonhos que são mentira na boca, sonhos que são mentira na alma. Quando são verdade, deixam de ser sonhos.

Dos sonhos, sonhos, a sinestesia que permanece no murmúrio do odor, do paladar, do calor, com os olhos da alma.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Não Esquecer


Estou só. Mas é-me impossível gritar – para quê?

Às vezes, mas raramente, o grito sobe, enrola-se-me na garganta e o mundo recua bruscamente para uma estranheza absurda. Mas é raro e tudo reflui de novo como uma pedra que subisse muito alto e desistisse no fim. E ainda bem, porque os sentimentos são um vício – ou não? O povo diz «o comer e o ralhar vai do começar». Mas tudo vai do começar: o amor o ódio, o choro, a ternura, o medo.»

Vergílio Ferreira



Não me apetece escrever.

A geada cai despudoradamente sobre tudo o que sobra do jardim, garimpando pelas sombras até manhã bem alta. O sol corre baixo, muito baixo, e ilumina os dias até ao fim de tarde chegando cedo, que a noite impera.

Sei que os homens inventaram o Natal colorido, as árvores gigantes, o brilho das luzes que enfeitam as ruas, que fazem sonhar as crianças e esquecer os adultos das outras, famintas, de barriga crescida e ossos salientes, que a Cimeira de África na Europa prometeu não esquecer.

Mas não esquecer é um pouco diferente de lembrar, que lembranças são algo que existe, que tem corpo, seja uma rosa, seja uma daquelas Torres Eiffel pequeninas que até serve de lima para as unhas, seja uma tartaruga de jade que significa longevidade e se compra em Chinatown para recordação, seja o que está bem guardado nos escaninhos da memória. Sempre algo palpável.

Não esquecer é uma coisa mais vaga. Há demasiadas coisas misturadas para «lembrar de não esquecer». É assim como uma prateleira de várias estantes onde há muitos livros, novos, antigos, de capas brilhantes e outros já sem lombada, à mistura com bibelots, fotografias, caixas com novelos de linha, dicionários, dossiers, cds, até um candeeiro. Porventura o mais valioso, o mais urgente para ser lembrado está naqueles livros cuja lombada já nem é, que é preciso manusear com cuidado, de papel escuro e baço. Aí a maior riqueza a não esquecer.

Mas essa urgência de encadernar os livros antigos é disfarçada pelas molduras de exóticos trajes de nómada, de negros de óculos brilhantes e pele luzidia, de senhores que se eternizam no poder de esmagar os mais fracos.

Que mão tem força para os afastar e encadernar os livros?



sábado, dezembro 08, 2007

Esperança



«Só desejava a campina

colher as flores do mato.

Só desejava um espelho

de vidro, para se mirar.

Só desejava do sol

calor, pra bem viver.

Só desejava o luar

de prata, pra repousar.

Só desejava o amor

dos homens, pra bem amar.

Oh! que fizeste, Sultão,

de minha alegre menina?»

Jorge Amado






Aqui onde moro, vive uma ribeira.

Há algumas décadas, fertilizava campos de arroz; há séculos teve direito a uma ponte romana, entretanto desaparecida sob camadas de cimento e asfalto. Para ela descia um pequeno córrego da colina além, córrego que já não é, ficando a marca que divide duas propriedades.

Actualmente um dos proprietários, nonagenário, magro, escorreito ainda, desce o pequeno vale, enxada na mão, a limpar a sua margem. Deliberadamente, ao longo dos anos, foi desviando o caminho do córrego, gradualmente retirando uns centímetros de terra ao vizinho, no seu afã de limpeza. Hoje é notória a linha curva que parte do marco que divide as duas propriedades, nogueiras e pessegueiros convenientemente plantados ao longo da berma.

Nada a fazer, há sempre quem conte com a educação dos outros.

A cimeira de África mereceu-me estes pensamentos comezinhos. África de falsas fronteiras, que os Europeus dividiram a seu bel-prazer, a régua e esquadro, sem respeito pelas fronteiras naturais. E quando falo de fronteiras naturais, não digo as fronteiras físicas do terreno, porque nem sempre os rios dividiram gentes, antes as uniam em suas margens. Falo de fronteiras humanas, o respeito pelos povos, pelas suas afinidades culturais.

A cimeira, que junta em Lisboa este fim-de-semana os representantes dos povos africanos e europeus, é por si só uma conquista. A primeira batalha, depois da outra, já ganha com demasiado sangue e sofrimento de ambos os povos, brancos e negros, da outorga de África aos autóctones.

À distância de meio século, saibam os antigos colonizadores despertar os novos – da mesma raça – para o respeito étnico dos valores de cada um, dentro do mesmo país.

Que o esforço gere polémica e a refrega seja útil, principalmente para os direitos humanos.

Assim teremos um mundo melhor.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A Máquina



«E o jantar veio para a mesa; rompeu a agradável orquestra de garfos e facas, para muito boa gente mais harmoniosa que as melhores partituras de Bellini ou Donizetti; e todos empreendemos, como aliados, numa batalha, cujos destinos não podiam ser duvidosos.

O médico e o abade, esqueceram por um pouco a recíproca antipatia; contudo esta afabilidade diminuía na razão directa do apetite. À sopa, eram quase amigos, ao cozido, tolerantes apenas; mas quando chegou o prato de meio, já os primeiros assomos de hostilidade começavam a transparecer. Um frango guisado foi o pomo da discórdia.»

Júlio Dinis


Fascinam-me as máquinas, por simples que sejam.

Havia dantes, em casa de meus pais, enormes fogões a lenha que eu admirava. Havia um na fazenda e um outro enorme na cidade. A minha cidade. E era tão grande e pesado que, quando mudámos para a casa nova, ele não foi para a cozinha. Talvez porque não coubesse, talvez porque não se coadunasse com a decoração, mas principalmente para que não fumasse na casa, escurecendo as paredes.

Então foi preciso construir para ele um alpendre no quintal, por trás dos anexos. Tudo porque não se passava sem aquela máquina multifuncional, de forma alguma substituível por um moderníssimo fogão a gás de quatro bocas embora a meio com uma placa para grelhados. Este ficava bem na cozinha, pouco mais que para enfeitar, uma ou outra vez experimentar um bolo no forno.

O Cozinheiro era um maquinista atento e cuidadoso. Pela manhã cedo o acendia, como eu hoje ligo o computador. Era todo em ferro escuro, com as bocas tapadas por discos que se tiravam (ou não, porque o central tinha um buraco onde cabia um dedo), consoante fosse preciso mais ou menos calor, de acordo também com o tamanho da panela a aquecer. Os discos sobrepunham-se perfeitamente uns sobre os outros. Na frente, uma barra grossa de metal reluzia a toda a largura, à força de solarine, tal como a torneira pequena de uma só haste, que só deitava a água da caldeira de cobre quando em posição vertical à face do fogão. Posicionava-se à esquerda, pois que à direita havia o forno, com um tabuleiro a meio, e, abaixo dele ainda um espaço para guardar as travessas sem deixar arrefecer a comida. Ao centro o fogueirão, onde entravam os toros de lenha logo trancados pela porta de aldraba, como todas as outras, com punhos enegrecidos, que só brilhavam em dias de grande limpeza.

Aquela máquina era a força da casa, o seu arrimo.

Fervia o leite para os meninos, logo cedo, aquecia a água para o café e para o jarro nas manhãs frias de cacimbo, iniciava o ritual da sopa, preparava as refeições da casa, cozia os bolos, grelhava os bifes de caça na chapa. Fazia a goiabada e o doce de loengo. Cedia as brasas para o ferro de engomar a roupa, fazia a comida dos cães. Pela tarde ainda se aproveitava dele a cinza para arear as panelas e os talheres de alpaca. E para estrumar a horta.

Naquele alpendre das traseiras, batia o coração da casa. O ruído das conversas que eu não entendia, as risadas, os cheiros, os sabores dos fritos de canela e açúcar roubados antes da mesa, o cão à espera.

Anos volvidos, quando regressei do outro continente, o coração já não batia.

A casa grande e bonita estava lá.

Mas eu não a encontrei.



sábado, dezembro 01, 2007

Viver do Sonho


«As quatro velas nos ângulos do caixão, derreadas de cansaço, endireito-as, esforço-me por, pingavam para o chão.

– Por que é que foste para jornalista? Uma vez contaste-me, achei tanta piada. Mas o que tem mais piada é tu acreditares na causa e efeito. Porque primeiro é-se e depois demonstra-se por que se é. E à beira do mar devias ter frio. Sinto-o mesmo aqui. Se fechasses a porta?

A sós contigo. Toda a história do mundo reduzida a mim e a ti. Com muitas circunstâncias adjacentes sem importância nenhuma.»

Vergílio Ferreira




Os sonhos, só porque são sonhos, nunca se assemelham à realidade. Brotam da exaltação do sono num contexto febril: quando são bons, são sempre em versão melhorada do real, quando são maus, são infinitamente piores.

Um dia sonhei a morte de meu pai. Não sei precisar os motivos ou os acontecimentos que o cercaram, situa-se algures pela infância. Recordo apenas que sofri desabaladamente durante meses, senão anos, com a ideia de o perder. Era o tempo em que o meu mundo só fazia sentido com a sua presença, a segurança da sua alegria, a sua imortalidade.

Quando a sua morte me foi anunciada – por ele, por aquela força que nos unia – e, logo a seguir, pelos telefonemas que exigiam a minha presença longos quilómetros além de mim, eu reagi com dor, sim, mas com beatitude, iniciando a vida que se me oferecia com novo espanto, com novas certezas. Afinal com as certezas em que me fui afirmando, a exemplo de tudo o que me transmitira. Não fui ao seu enterro.

As consequências foram devastadoras. Devastadora terá sido também a dor dos que então o acompanharam e nunca me perdoaram a decisão. Lamento e sinto remorso por isso, pelo sofrimento causado aos vivos, mas não me arrependo. Afinal, fui coerente comigo. E com ele. Com o nosso espírito que planava em paz.

Quando acordo numa manhã fria, na certeza dum sol que não aquece, eis que as nuvens marcham caudalosamente e preenchem o espaço antes azul e se enovelam sem chuva, adoçando o ar, em abraços sozinhas, afagando-se.

E o cinza aquece o pinheiro alto que se destaca e, nele, o ninho de Inverno do melro negro.