sexta-feira, fevereiro 29, 2008

(Des)Construção


Não é este sossego

que eu queria,

este exílio de tudo,

esta solidão de todos.

Agora

não resta de mim

o que seja meu

e quando tento

o magro invento de um sonho

todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra

alcança o mundo, eu sei

Ainda assim,

escrevo.

Mia Couto



Avaliar é sempre um processo difícil.

Principalmente avaliar até que ponto nós próprios estamos em condições. Saber quando devemos parar de avaliar os outros em função das nossas convicções, quiçá baseadas em experiências diferentes, até que ponto as nossas convicções estão correctas à luz dos novos conhecimentos, até que ponto os nossos conhecimentos apreenderam a evolução da ciência, até que ponto evoluímos com a ciência nova, com o vento novo, com as primaveras que vão renovando o que os Invernos queimaram em geadas negras.

Avaliar é, acima de tudo, comparar. O antes e o depois. Há que conhecer o percurso anterior de um indivíduo para se poder aquilatar acerca da sua competência num dado comportamento. Não é a fugacidade de um momento que justifica um carácter; não é um gracejo oportuno que faz um humorista nem uma explosão de cólera que marca um criminoso.

Ninguém nasce do nada. Ninguém nasce de olhos claros numa comunidade cigana, ninguém desponta de olhos oblíquos n uma Índia de olhos redondos ou negro entre os Esquimós. O urso só é branco na imensidão das neves, até a raposa ali se pinta prateada.

Em todo o lugar há um tempo próprio. Belo nos seus esplendores, o campo que brota florescente na Primavera e traz a fartura no Estio, explode em tonalidades fortíssimas nas folhas outonais, gritando a sua beleza incontornável aos ventos que lhes vão cerceando a seiva e as despenham para a eternidade de um Inverno.

Porém é importante, impõe-se uma avaliação contínua do que somos capazes de poder fazer, em campos separados, pessoais, sociais e profissionais, sem que deixem ao mesmo tempo de estar unidos num só, equilibrados entre si. Há direitos e deveres, não há uns sem os outros. A vida é uma só e tem tempo próprio, está visto.

E é neste sentir, nesta entrega permanente, que se constrói cada indivíduo.

domingo, fevereiro 24, 2008

Desejar Poder Querer

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
Fernando Pessoa




Quantas vezes a memória me aparece como um sótão cheio de cadinhos! Depois é preciso escolher, cadinho sim, cadinho não. Cadinho sim, cadinho sim. Cadinho não. E por aí adiante.

Nem todas as memórias estão prontas a servir, muitas estão turvas, outras, é preciso temperá-las para poderem ir à mesa; e há aquelas que, como o bom vinho, precisam de tempo para amadurecer, em cascos de carvalho, de preferência. Finalmente há as que, como o vinho verde, não devem ser guardadas muito tempo; borbulham e são deliciosas se servidas frescas. Mas para isso têm de ser de boa casta, de outro modo, são perigosas.

Por isso eu procuro os cadinhos que já maturaram alguns anos. Aí, as memórias estão mais repousadas. Mesmo com assento no fundo, saem límpidas e claras, aquietadas quando sofridas, vazadas devagarinho e no tempo certo.

Mas de quando em vez encontro-me com outras histórias, de memórias de outros que tocam nas minhas e batem no mesmo ritmo, doloroso, magoado, monótono se quiserem, mas naquele bater que nos alimenta a existência, que nos acende os afectos, os brios, o orgulho de se ser português.

E eu li, na revista Notícias Sábado do DN de ontem, retirado de um artigo intitulado «Uma instabilidade conveniente», sobre um fundo em tom verde de esperança (o sublinhado é meu):

«Outra das medidas que a Austrália não perdoou a Alkatiri foi a sua aproximação a Portugal e a adopção do Português como língua oficial. Uma feroz campanha, orquestrada pelos media daquele país, acusou Portugal de estar a impor aos timorenses o seu idioma, com professores pagos principescamente... E enquanto as calúnias circulavam em roda livre – nas televisões, rádios e jornais, chegando mesmo a fazer parte do discurso dos turistas de passagem por Timor – o que fez, por exemplo, a CPLP? Nada. O linguista australiano Geoffrey Hull foi dos poucos que tiveram a coragem de denunciar o ataque ao idioma de Camões no que denominou de “inverdades anglofónicas”. Em resposta a uma série de artigos hostis, Hull recordou, que “quem está familiarizado com a História” sabe que “a língua portuguesa sempre foi preponderante para a identidade nacional do país”. Se ainda houvesse dúvidas sobre as intenções de Camberra, elas dissipar-se-iam ao lermos o que deixaram escrito, numa placa de bronze afixada na fachada do Mercado Municipal de Dili, emblemático exemplar da arquitectura portuguesa, os técnicos australianos que ali efectuaram uma simples operação de restauro: “Este edifício é uma oferta do Governo e do Povo australiano para a celebração do dia da Independência de Timor-Leste em 20 de Maio de 2002.»

Nós somos Portugueses e temos História. Uma História bonita. Não envergonhamos a União europeia, de que somos parte integrante. Para quê tanta modéstia? Tanto receio de parecer mal? Tanta hesitação em reclamar ajuda imediata?

O mundo sabe que não nos move o interesse económico, que a Austrália já se adiantou em duas gerações pelo menos. Mas há um povo que sofre.

No plano dos afectos, Timor também é Portugal.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Contos


Adieu, Gringoire!

L´histoire que tu as entendue n’est pas un conte de mon invention. Si jamais tu viens en Provence, nos ménagers te parleront souvent de la cabro de mousu Seguin que se battégue touto la nuei emé lou loup, e piei lou matin lou loup la mangé.

Tu m’entends bien, Gringoire :

E piei lou matin lou loup la mangé.

Alphonse Daudet



Acordar madrugada abrindo, ao som da chuva soprada de vento ou simplesmente pingando dos beirais, deixa-me quieta, sem abrir os olhos. Posso fantasiar um outro espaço, posso até abrir o meu cesto mágico.

Ele está cheio de todas as histórias que me guarneceram a infância como as camélias matizam agora a primavera. E são de todas as cores: de raposas matreiras e fadas boas, de princesas más que se transformavam em gatas, de meninas que conviviam com bichos – Bonne Biche, Beau Mignon – meninos que corriam mundo entre as asas de um ganso, aquela D. Redonda que, feita missanga colorida, entrou no mundo das formigas; do Sandokan, de piratas, de viagens sobre e por baixo da terra. Só mais tarde Walter Scott e Ponson du Terrail, Delly dos príncipes russos e das valquírias.

Há a releitura dos contos de crianças – o Capuchinho Vermelho de Perrault, a Alice no País das Maravilhas – puras alegorias, alguns nos deixam imagens de escrita belíssimas como aquele conto impar da cabra do Sr. Séguin, enfim liberta da corda que a prendia, que vive um último dia de liberdade plena, de euforia, de exaltação, inebriada pela montanha que a recebeu em festa: os abetos em vénias porque nunca tinham visto nada tão bonito, os castanheiros dobrados para acariciá-la com a ponta dos seus ramos, as flores douradas e as campânulas azuis espalhando perfume em seu redor. Só até ao crepúsculo. Até a noite chegar.

Os contos de encantar da Xerazade, os contos suaves do Natal, a Dama Pé-de-Cabra e a Aia, deixaram-me o gosto de os ouvir, de os contar, de os ler, mesmo os contos de Torga talhados em rocha dura. Mas os meus aprazimentos estão com Aquilino e a sua prosa riquíssima de metáforas e figuras que me deliciam.

Mil novecentos e setenta e quatro deu início a um conto diferente. Apanhou-me em plena corrida por prados verdejantes e florestas de duendes, porém o corcel falhou um salto. Estatelei-me em Oran. Paris continuou Paris , revelou ao mundo Tarkovsky, mas eu estava de quarentena.

Quando regressei, não passava de um pied-noir.



sábado, fevereiro 16, 2008

Portugal, Século XXI

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

sem ser dor ou ser cansaço

nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

nunca dizendo comigo

o amigo nos meus braços

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

recusando o que é desfeito

no interior do meu peito

Maria Teresa Horta





Sem rosto e sem coração surge a mulher pela manhã, enrugada de sono, acordada pela fadiga que o dia aponta, a limpar os sonhos na água que escorre do chuveiro morno, espreguiçando as cores da noite. O tempo urge no afã das tarefas inominadas que há a cumprir antes do transporte que há-de levá-la ao emprego a que a sociedade dá nome e remunera, mas para ela é coisa nenhuma, que o seus pensamentos ordenam mentalmente todo o percurso a palmilhar no dia longo que para ela só desponta no final do serviço.

Recolher as crianças, saber dos estudos, os trabalhos de casa, fazer as compras, as refeições, a roupa para mudar, pôr a lavar, estender, passar a ferro. O marido tem trabalho até mais tarde, faz uns biscatos para o dinheiro esticar para as roupas dos filhos, para os sapatos que já não servem. Chega a casa cansado, coitado, há que deixar pronta a janta antes da reunião de pais da escola, sempre demora mais do que diz na convocatória.

Chega estafada, com os problemas dos outros a acrescentar aos seus, as preocupações redobradas, os seus filhos convivendo com aqueles outros filhos daquelas mães desprotegidas, maltratadas pelas vidas, pelos seus homens sempre ausentes dos problemas dos filhos que também são deles. Há aquele pai adoptivo, cuidadoso, o olhar abrindo de preocupação, como ela, pela menina que sofre ainda uma infância de maus-tratos e não consegue encontrar na escola a segurança de que precisa.

Quando chega a casa, as crianças estão pregadas na televisão, o marido dorme no sofá, já jantado. Há que lembrar-lhe o caminho do quarto, dar banho aos meninos, dar-lhes de comer e pô-los na cama, arrumar a sala, os brinquedos, a roupa esquecida sobre as cadeiras, ainda quer dar uma olhada à novela, aproveita para passar a ferro entretanto. Antes de pensar em deitar-se, descer o que há no congelador para o dia seguinte, até se esqueceu de jantar.

Aquece um copo de leite e senta-se na mesa da cozinha.

As suas mãos afagam o copo enquanto ela afoga o seu entendimento da vida.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

O Vestido Azul

O meu país sabe a amoras bravas
no verão.      
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos.
Reparo que também no meu país o céu é azul.
                       Eugénio de Andrade


O azul é a cor por excelência.

A cor do mar. A cor do céu limpo. De certeza a cor que primeiro identificamos, assim que somos dados à vida. Nem sei se haverá alguém que não goste de azul. Na reconhecida ausência de vocábulos à altura de designar a multiplicidade de tons, assim o designamos azul-claro, azul-escuro, azul-marinho, azul-mar, azul-cinza, azul-eléctrico, azul-petróleo e mesmo azul-céu, a cor do infinito.

Por mim, não posso dizer que tenha uma cor preferida. Gosto de cor. Gosto das cores. Da união de todas elas. Menos da ausência, mas também.

Hoje, porém, queria trazer aqui apenas o azul, porque um amigo deste espaço aberto, por delicadeza, grato por coisa quase nenhuma, mandou-me uma flor azul em forma de som.

Acontece que eu não consigo postar o vídeo que ele me mandou e já desisti de pedir ajuda ao Blogger.

Sobre um fundo sonoro, um narrador conta a história de «uma garotinha muito bonita morando num bairro pobre de uma cidade distante […] frequentava a escola local e se apresentava quase sempre suja, suas roupas velhas e maltratadas. O professor ficou penalizado […] separou algum dinheiro e resolveu lhe comprar um vestido novo.

Ela ficou linda no vestido azul.

Sua mãe passou a lhe dar banho todos os dias, pentear seus cabelos, cortar suas unhas […] Nas horas vagas, o pai resolveu dar uma pintura nas paredes, concertar a cerca e plantar um jardim. Os vizinhos, envergonhados, decidiram também arranjar suas casas, plantar flores, usar pintura e criatividade […] um religioso pensou que bem mereciam o apoio das autoridades […] e o bairro ganhou ares de cidadania.

E tudo começou com um vestido azul.

Não era intenção daquele professor concertar toda a rua nem criar um organismo que socorresse o bairro. Ele fez o que podia. Deu a sua parte. Fez o primeiro movimento. […] Lembremos que é difícil limpar toda a rua, mas é fácil limpar a nossa calçada. É difícil reconstruir um bairro.

Mas é possível dar um vestido azul.»

O meu amigo é um menino-poeta, que tira fotografias lindas e gosta de música e estuda, para ser maior no mister em que dá os primeiros passos. Tem uma sensibilidade do tamanho do mar que nos separa e sabe comunicar. Quer ser professor. Que bonito!

Muito obrigada pela flor, Rafael.



domingo, fevereiro 10, 2008

Dividir para reinar

Por toda a parte assistimos assim ao desenvolvimento exaltado do indivíduo nacional. E, com o advento definitivo das democracias, haverá na Europa, não a universal fraternidade que os idealistas anunciam, mas talvez um vasto conflito de povos que se detestam porque se não compreendem, e que, pondo o seu poder ao serviço do instinto, correrão uns contra os outros – como outrora, nas velhas demagogias gregas, os homens da Mégara se lançavam sobre os homens da Lacónia, e toda a Ática se eriçava de armas, por causa de um boi disputado no mercado de Fila ou de uma bulha de rufiões nos grandes pátios da Aspácia.

Eça de Queirós


Voando sobre décadas de entendimento das coisas humanas, ainda me surpreende o espanto das crianças. O olhar atento ante cada brinquedo novo, o colorido, o movimento, a estranheza; a cada aceno, o gesto, o toque, o olhar; a cada encontro com um menino, o riso, o brilho do olhar, a mão estendida. Penso em Rousseau e no seu entendimento dos homens. A aculturação falseada por contactos impostos cada vez mais cedo, moldam um olhar diferente, receoso, aberto, sofrido, esquivo, defensivo.

Perdida a inocência, é cada um por si, contra todos. Já não se lê nas escolas ou em casa a história bonita das sete varas que aquele velho sabedor mandou cada um dos seus filhos quebrar, uma por uma, junto ao seu leito de morte. Do adulto ao mais jovem e frágil, todos partiram cada uma, facilmente, num vergar tranquilo. Porém, as sete varas unidas num molho, simplesmente atadas, não houve força que as pudesse quebrar.

Não é palavra vã citar que a união faz a força. E que o não seja apenas na economia feroz.

Reporto-me à realidade actual das escolas aviltadas, nem só pela ignorância e inépcia dos legisladores, mas pela sandice da luta local pelo poder não partilhado, a falta de generosidade, a vacuidade do esforço alternado de cada um na travessia do riacho fundo por sobre um tronco estreito e periclitante, sem um braço estendido à partida ou à chegada, antes um pé rolando o tronco, criando dificuldades. Todos querem o seu espaço só para si, não se dão as mãos, não procuram afinidades, não se unem mostrando a razão a quem de direito, não reparam que lutam uns contra os outros. Onde a razão reside tão visível.

Não importa só quem está ali. Importa o campo adiante, a margem, a terra firme que é preciso arrotear, semear, regar, para que se torne esplendorosa. Tem de olhar-se em frente, para os outros, para as crianças, para os que precisam, para os que sofrem.

De outro modo a força perde-se em batalhas vãs, o olhar esmorece e o mundo perde a luz.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Ouvir os Sonhos


«…Creio que tudo é eterno num segundo,

Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,

Na flor humilde que se encosta ao muro,

Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

Na ocupação do mundo pelas rosas,

Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.»

Natália Correia




O céu não nos diz quando vai chegar a Primavera. Não envia bilhete-postal de flor abrindo, ou folhinha rompendo capa de tronco seco. Mas descobre-se em azul, azul, e fala ao vento para soprar mais manso, para voar mais quente.

E nós sentimos.

O céu também não fala sobre o Inverno que apresta um frio devastador de geada ou granizo ou tempestades de vento. Mas manda o sol passar mais baixo, deixa manchar-se de nuvens brancas que tinge escuras e fartas, crescendo em rolos, e faz troar e abrir as comportas.

E nós compreendemos.

Quando a terra vai tremer ou no mar se abrir uma fenda, o céu sopra os ouvidos dos seres que lhe escutam a alma para logo partirem a salvo da onda gigante que vem galgar os campos e as casas.

Só o Homem não escuta, afogado em desassossego.

O Homem esqueceu os cheiros e os sons da terra, o afago do vento, apagou o brilho das estrelas. É hora de abafar o ruído, chegou o tempo de fechar os olhos e ouvir a música do mar, desnudar-se e cobrir-se de sol, fechar os olhos e ouvir o que não tem som, mergulhar nas águas, fincar os dedos na areia grossa e agarrar os sonhos.

Com as duas mãos.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Carnelevare

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
P’ra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
P’ra tudo se acabar na quarta-feira

Tristeza não tem fim
Felicidade sim


Vinicius de Morais






– Vossa Excelência não é lá muito dada às coisas da Cúria pois não?

Pois claro que não. Menos ainda quando era preciso repisar o Auto da Alma, com mais requintes, quando já o tinha considerado «uma estopada» no quinto ano do liceu. Isto nos velhos tempos em que não se tratavam todos por tu, professores e alunos; quando – discriminadamente – os rapazes eram logo tratados por senhor doutor e as meninas por minha senhora no primeiro ano de faculdade.

Sempre me fez espécie a história dos nomes dados às nossas Feiras: a Quarta de Cinzas, a Quinta da Ascenção, a outra ainda do Corpo de Deus, a Sexta da Paixão, a Terça Gorda.

Em relação a esta última, terei aprendido lá por casa que era terça-feira gorda porque calhava sempre em dia de lua-cheia, talvez relacionando com o facto de que era móvel em função das fases da lua. Nada disso. O domingo de Páscoa é que é decidido em função da lua – ocorrendo no primeiro domingo após a primeira lua cheia que se verificar a partir de 21 de Março, equinócio da Primavera – e para trás e para diante são então marcadas as datas, respectivamente, do dia de Carnaval e do dia de Corpo de Deus.

O Carnaval (na sua etimologia carnem levare que significa abstinência de carne) dá início ao período de jejum da Quaresma que termina na Páscoa. Ressalta aqui a função pedagógica da religião, no combate a um dos pecados capitais, a Gula, mas claramente caída em desuso, tendo como resultado o aumento de obesidade entre os cristãos. Como lei imposta não se cumpre, escreve-se em muito papel e muitos artigos numerados. Isso basta.

A razão de chamar-se à quarta-feira seguinte «de Cinzas» é que sempre me intrigou, mas lá me chegou a luz: esta festa marca a mortalidade de Adão, a condenação do nosso primeiro pai pelo pecado original: voltar ao pó, a tornar-se em cinzas, pois então. Os cristãos são assim convidados a purificar-se das suas faltas e a fazer penitência através da privação da carne.

Não simpatizo nem um pouco com as manifestações carnavalescas que proliferam por aí, mas respeito quem nisso encontra uma forma de evasão e renovação. Há quem ligue estas festas às Saturnais pagãs dos Romanos, estas realizadas por ocasião do solstício do Inverno, ainda em Dezembro, portanto, tendo por objectivo dar alguma alegria e coragem ao povo, num período de campos gelados, noites longas e aparente ausência de vida na natureza. Ofereciam-se então presentes: mel, doces, ouro e símbolos de felicidade.

Parece que a renovação existe, sim.

De uma forma ou doutra, num ou noutro tempo, os rituais repetem-se.