domingo, março 30, 2008

I'm coming home...

Em Montréal , Je me souviens - dizem os automóveis que passam...




Bye-bye, Ottawa, Au revoir, digo eu.



De regresso a Toronto, Yours to discover, é o que rezam as matrículas dos carros.




Em casa...


Até à volta, Mr. Binx, take care of...

sábado, março 22, 2008

Estrelas no Céu


A poesia não é tão rara, como parece.
Na mais ínfima das coisas,
A poesia acontece.
Aconteceu poesia,
Quando nos teus olhos cor do céu,
Vi um pedaço de céu, que me cabia.
Aconteceu poesia,

Quando as tuas mãos numa carícia vaga,
Moldaram no meu rosto, ar de angústia,
Que o tempo não apaga.

Aconteceu poesia,
Quando nos teus olhos cor do céu,
Vi um pedaço de céu que me fugia.
Até no dia em que morreste, Mãe,
Aconteceu poesia.

Fernando Vieira



No dia dedicado à Poesia, a barca de Caronte passou levando devagarinho o meu último Eduardo, renitente em pagar o óbolo mesmo após os noventa anos. Afinal, tudo o prendia a este lugar terreno. Principalmente os afectos e também a terra de que se afastara por tantos, tantos anos.

E eu, do outro lado do mar.

Vagando num outro espaço a olhar e a pensar o mundo numa perspectiva desusada. Não é normal palmilhar o planeta sobre um azul que pode não ser o mar, saltitar por sobre tufos brancos que podem ser pedras ou restos de neve não derretida, brincando de algodão em rama.

Quando o gelo todo derreter nos pólos e o mar subir nos trópicos, pode ser que nasça um novo deus. Grafado com letra minúscula talvez se mantenha mais próximo dos seres que povoam a terra. Provavelmente não será aquele velhinho de barbas brancas porque os humanos que restam não conhecem ninguém assim. A sua memória esvaiu-se com a hecatombe que varreu a humanidade e limpou toda uma civilização.

O deserto, e só ele, salvou a espécie. Alguns nómadas, os verdadeiros nómadas, são os sobreviventes na pureza de tudo aquilo que a natureza apagou.

E bem.

Ficam as memórias que as dunas contam de uma civilização cruel e insensata que dominou os continentes por milénios. Assustados mas protegidos pelas tempestades de areia, vão ao encontro do Principezinho a quem narram todas as lendas e de quem aprendem os outros mundos de homens que vivem contando as estrelas que povoam o céu.



terça-feira, março 18, 2008

Calor no frio



Desta vez deixa-me

Ser feliz.

Nada aconteceu a ninguém,

Não estou em parte alguma,

Simplesmente sucede que sou feliz

Pelos quatro costados

Do coração, andando,

Dormindo ou escrevendo.

O que posso fazer, sou

Feliz.

Pablo Neruda




Mergulho no avesso do mundo.

Mochila às costas, embrulhada de botas e kispo longo, luvas grossas e cachecol e capuz e vento fresco no rosto, caminho por veredas abertas por entre a brancura já escurecida pelo sal e sujidade dos dias de céu aberto onde o sol não aquece. Passo apressado que a temperatura windy não deixa lugar para grandes delongas sem o aconchego de qualquer lugar abrigado.

No autocarro é preciso desembaraçar as mãos que o percurso é longo até downtown. A sonolência vence os perfis da multiculturidade que se mistura nos transportes, orientais em maioria, indianos, véus aqui e além acariciando rostos de jovens de olhar fundo, alguns, bastantes, mergulhados em livros, outros lendo jornais, uns apenas de olhos fechados. Jovens mães transportando carrinhos e crianças pela mão, os degraus do autocarro descendo a cada entrada de alguém com mais idade.

Descanso o olhar na terra toda vestida de branco, as árvores nuas alongando as ruas largas, o horizonte imenso onde perco o olhar.

Os dias têm já uma hora mais e deixam tempo para o regresso cedo.

Ali a quietude impera na espera dos senhores da casa.

Olho o espaço em volta respeitando quem a guarda.

Com a ansiedade de quem ama.


quinta-feira, março 13, 2008

Cumplicidades


Uma bicicleta motorizada…que beleza!

Dá para recordar a primeira sensação de liberdade plena na infância, e dar uma volta por ruelas já limpas da neve nos jardins em volta da casa, é indescritível.

Mas bicicleta e motorizada e moto, tudo se mistura em relacionamentos desconexos de vivências de alegrias e angústias, inseguranças e temores, separadas por décadas e que agora emergem em conversas risonhas. Como o tempo afaga as arestas e torna tudo tão suave!

«Irmã, acabou-se a gasolina, estou a pé na estrada, a caminho de casa, ninguém pára…»

«São 2 da manhã, o que é que esperas…?!»

Depois é preciso voltar para trás, a moto ficou escondida algures, tapada, disfarçada nas ervas… aqui… mais além, não, foi ali que a deixei... tenho a certeza.

Numa outra noite, dia aberto já, e o telefone toca… «hospital…» corridas desenfreadas de carro e coração… uma maca no corredor é aquele ali… não, mas este não é o meu filho!

Já sem crer…inchado? Não, não é ele…!

Então, como numa aparição, surge da porta ao fundo numa cadeira empurrada, esguio, o soro ligado a um braço, o outro de dedo no ar… sorriso pálido: «Eu, estou aqui!»

«E daquela vez…lembras-te?»… «Se lembro… nem a mãe sabe da missa a metade…!»

O sorriso doce de menino traquina mantém-se no tempo, desarma e enrola e seduz.

Laços que não desatam.









sábado, março 08, 2008

Como Eles nos vêem ...



Parece que alguém ensandeceu num dos canais portugueses… ofertando, no Dia Internacional da Mulher, um programa dedicado a elas com um exemplar masculino – com os 206 ossos do esqueleto bem distribuídos, é certo – mas que só revela como as mulheres estão ainda longe de aceder às decisões de cúpula, neste país.

Em pensamento, estou hoje em Lisboa, ao lado das PROFESSORAS.

Aqui deixo, porém, algumas pinceladas de Mulher, pela mão de alguns escritores do último século, diferentes formas de lhe sentir o pulsar.



António Lobo Antunes:

«Concebi por Lana Turner uma paixão absoluta, exclusiva. Em momentos de desânimo quase penso que me não retribuiu. Mas o desânimo, claro, é passageiro, e o cabelo platinado, as sobrancelhas evasivas desenhadas a lápis, em semicírculos perfeitos, os vertiginosos decotes de cetim, o bâton escarlate, tudo me garante um amor eterno, eternamente partilhado. A filha matou o gangster Johnny Stompanato, seu suposto amigo

(nunca o amante, o amante era eu)

e ainda hoje lhe estou grato por isso. Usou a faca da cozinha onde Lana Turner, aposto, fazia salsichas com couve lombarda, o meu almoço favorito, a pensar em mim. Também não me agradava que beijasse os outros nos filmes. Mas talvez fosse melhor dessa maneira porque, se chegasse a casa com bâton e me desculpasse à minha mãe

– Foi a Lana Turner, anda perdida aqui pelo rapaz

receio que ela não levasse em gosto a hipótese

qual hipótese, a certeza

de o filho de onze anos casar com uma divorciada, porque isso afastava a cerimónia da igreja e nós éramos católicos.»


Miguel Torga:

«A mulher! Não me canso de a exaltar. O que o homem é a seu lado! Um Adão inocente, um Édipo perplexo, um Otelo cego. Flor emblemática da criação, perfumada de futilidade, só ela sabe pecar sem remorsos, procriar sem vanglória, entender sem lógica. E sofrer pragmaticamente, já que foi sempre a Antígona heróica da grande tragédia da vida. Dona do mundo e depositária do futuro, nunca o quis parecer, sequer. Gentilmente, deixou essa presunção ao pobre companheiro que, depois de tantos milénios de convívio, continua a revolucionar os tempos sem perceber que ela é o cordão umbilical da História.»


Virgílio Ferreira:

«É dentro de nós que idealmente possuímos a mulher, tentando aí a permuta de um "eu" e de um "tu" esgotando-se na nossa absoluta solidão, na destruição de tudo em volta, no instantâneo esquecimento do que nos rodeia e da própria realidade da mulher, a procura do que se não encontra porque não existe ou nos escapa.»


Aquilino Ribeiro:

«Ela tinha os olhos no chão, mal embrulhada na capucha de burel velho; ele estudava-a dos pés à cabeça e apenas lhe parecia mais olheirenta, mas o sempre-mesmo ar, tez mosqueada de sardas, a modo da pinta nas cobras, o seio alto e rijo no chambre estreito de flanela, a cinta bem lançada, toda ela mui magana no saiote vermelho. Aquele vermelho assanhado, cheio de cio nos poros, a feder a badulaque, escaldava-lhe o sangue. Fêmea de uma cana, já dizia o rifão, da galinha a preta, da pata a parda, da mulher a sarda!»


quinta-feira, março 06, 2008

Andar no Céu



Assim tem sido sempre a minha vida, e

assim quero que possa ser sempre –

vou onde o vento me leva e não me

sinto pensar

Alberto Caeiro



Os homens todos deveriam saber voar.

Conhecer as nuvens do lado do céu, olhar a prata das estrelas, encantar-se com as cores da terra pintando a tela azul-verde dos mares. Encontrar-se deus varrendo do espírito a fealdade da sua carapaça, a rigidez do aço que assombra os seres do ar. Construído pelos homens para invadir o reino que não lhes pertence, não faz parte da paisagem, é um ser desconforme.

Ou antes, é belo, é perfeito, mas não é natural. Não tem leveza, não vibra com o sopro do vento afagando o bico, estremecendo as penas, não se entrega ajeitando as asas com a sensualidade da águia ou do condor. Preenche todavia a ambição de glória dos homens, o prazer da conquista, da caça. É um troféu.

É a diferença que vai entre a epopeia de decassílabos acentuados na nota inalterável, na sucessão dos cantos, na complexidade da obra ímpar que constrói uma História de homens e deuses , e a modelação livre e apaixonada de uns versos ao ente fantástico guardador dos mares:

«…Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse, “Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?”

E o homem do leme disse, tremendo,

“El-Rei D. João Segundo!”…»