quinta-feira, maio 29, 2008

A repetição do rito


Por que me falas nesse idioma?

perguntei-lhe sonhando.

Em qualquer língua se entende essa

palavra.

Sem qualquer língua.

O sangue sabe-o.

Uma inteligência esparsa aprende

esse convite inadiável.

Búzios somos, moendo a vida

inteira nessa música incessante.

Morte, morte.

Levamos toda a vida morrendo em

surdina.

No trabalho, no amor, acordados,

em sonho.

A vida é a vigilância da morte,

até que o seu fogo veemente nos

consuma

sem a consumir.

Cecília Meireles



Ouço a voz do tempo escoando nos beirais suados, num sussurro igual ao espanejar das andorinhas pousadas no fio da corda velha suspensa nas traves da varanda.

Os passos suaves, as mãos delicadas colhendo cada tronco de flor envelhecida nas sardinheiras coloridas, pousadas no muro baixo e debruçadas, oferecidas à sedução do sol garboso da manhã.

O odor das folhas de malva chega em sinestesias de cor e textura, de sons, de calor. O cheiro que exala a cozinha velha. O cheiro ao doce de morango. O cheiro da chuva. Ao cheiro do café, a claridade da manhã alta nasceu cedo, na madrugada ainda escura.

Os ruídos, os cães cansados da caça às perdizes, as pessoas girando, as conversas, os risos. Os gritos. O cacarejar da bicharada à solta, as andorinhas pipilando nos ninhos altaneiros dos beirais.

A buganvílea junto ao portão grande, os agapantos brancos ao longo do muro a que chamavas coroas-de-henrique. As dálias surgindo no meio dos outros verdes, de cor vermelho-negro pincelado de branco, as florinhas em bando, pequenas e azuis, as alegrias-do-lar debaixo da laranjeira ali perto. As mãos de criança apertando o casulo das sementes e tornados vermes retorcidos. A melancolia do teu olhar mergulhado nas laranjeiras até ao fundo da horta. A humidade nas faces.

Nada é igual, só as sardinheiras.

Hoje tive saudades, Mãe.

Até à eternidade.

domingo, maio 25, 2008

As rosas já não são cor-de-rosa


É na VULNERABILIDADE da tua pele
Que afago TAPEÇARIAS suaves
E traço a SILHUETA da luxúria
Com uma PENA de sonho permanente.


É no ORVALHO do desejo derramado,
Sem a OBSTRUÇÃO de juízos adormecidos,
Que da MORTE nos acordamos acesos
Quando a inflamada MANHÃ nos sorri.


És o EXPONENTE da minha fraqueza,

És CRIANÇA e mulher de raiz no teu sol,
Onde me aqueço e me entronco mais forte.

O teu ar é o CONSELHEIRO que me atrai

Para te AFASTAR de memórias, a gritar
Nas brumas que te matam em silêncio.

Nilson Barcelli em Maio 2008
Escrito para os 3º jogo do Eremita com as 12 palavras obrigatórias em maiúsculas



Enquanto as roseiras florirem só porque é primavera, eu vou sorrir para o mundo.

É que as rosas insistem em abrir agora, mau grado as nuvens que tapam o sol, a água que encharca os botões, o vento que lhes leva as folhas.

Porque elas já surgem magoadas, porque a chuva vem ácida, porque os ventos já não são sérios e trazem no ventre caminhos que rasgam a majestade, que deixam marcas de pena, ponteiam as folhas, secam os troncos, matam as cores, secam as pétalas.

Pode ser que os homens se encham de bondade e construam a represa que sustenha a caminhada inexorável da destruição do planeta. Só que eles não caminham em grupo, não voam em formação. E a força perde-se daqueles poucos que conhecem os caminhos, que seguem a rota. A maioria segue por saí sozinho, sem tino, desafiando os ventos, ao encontro da tempestade.

Afinal os homens dominam o mundo mas não dominam a natureza. O céu despenha a água de sempre e a terra enfurece-se porque lhe desviaram, lhe cortaram os trilhos, os leitos que criou para ela, ela que querem domar. Gastam materiais e tempo sem respeito, sem ouvirem a outra parte, que serenamente mostra ser a mais forte. A água corre pelo caminho de sempre, ali ao lado, sem tocar na obra do homem. É só uma amostra.

Mas o homem está feliz porque fez o que queria.

Terá feito o que deveria?

segunda-feira, maio 19, 2008

Deixem a língua fluir...


Mia Couto é um escritor de letra maiúscula que brinca com as palavras a seu gosto mas mantém a sintaxe na ordem correcta, pelo que pode à vontade criar neologismos desregrando as palavras, dando-lhe nova vida, comunicando numa nova realidade linguística que é a sua, a moçambicana. O Português de Moçambique. Recebi por email este excerto, é de algum modo uma forma muito sua de comentar o Acordo Ortográfico.



«Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?
Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?
Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
• Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
• No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
• A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
• O mato desconhecido é que é o anonimato?
• O pequeno viaduto é um abreviaduto?
• Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
• Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
• Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
• Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
• O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
• Onde se esgotou a água se deve dizer: 'aquabou'?
• Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
• Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
• Mulher desdentada pode usar fio dental?
• A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
• As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: 'finanças'?
• Um tufão pequeno: um tufinho?
• O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
• Em águas doces alguém se pode salpicar?
• Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
• Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
• Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
• Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.
Devolver a estrela ao planeta dormente.»

Mia Couto

quarta-feira, maio 14, 2008

Tanto ainda para dizer


Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca



Cada vez gosto mais de ler Lobo Antunes.

Não estou a falar dos livros, mas dos pedaços de si que deixa em cada crónica que escreve quinzenalmente. Tem momentos de intensa felicidade nos quais consegue passar-me as suas emoções como aquele pardal do meu telhado que vela incansavelmente por sua dama e sua prole crescendo no buraco do ventilador. Ele canta sem parar, tem de manter-se alerta e dizer ao mundo que tem os seus ovos a chocar, há novos pardais a nascer. E grita a sua presença, a sua ansiedade, a sua felicidade de progenitor.

António Lobo Antunes tem a ventura de ver reconhecido o seu talento inegável por quem é português como ele – e por quem não é – por quem aprecia de facto a sua mestria nas letras, na simplicidade do registo que ele mistura de humor e angústias e alegrias, rememorando convívios e cumplicidades, olhando os pombos e diferenciando-os, colando-os inconscientemente às gentes que o cercam. Ele entra na lavra dos outros, penetra em cada autor, revela o sofrimento e a dor de cada palavra conseguida, cresce quando diz que foi o sofrimento dos que viveram antes dele que possibilitaram a sua escrita hoje. A eterna metáfora do sofrimento que dá a vida: Cristo na cruz. A mãe parindo um filho.

Nesta última crónica da Visão, ele consegue comover numa súplica dolorida que lança para a eternidade que deseja: «E os pombos de Paris a olharem para mim de banda, com vontade de me engolirem. Por favor não me engulam por enquanto: há tantos livros em mim à espera de serem escritos.»

Depois de o citar, não me atrevo a dizer mais.

sexta-feira, maio 09, 2008

O tempo, segredo dos velhos


Assim às vezes me apetece ignorar o meu corpo, esquecê-lo, olhá-lo de súbito com surpresa: o que é feito de ti, velho corpo? Como passas? Estás pois acabando. Virá daí a inverosimilhança da morte? Um corpo que apodrece, mas a luz de dentro tão viva, tão igual: como entender que envelhecesses, meu irmão? Mas não o penses. Agora não. Ah, sê em ti esse princípio eterno que te vive. Abre a janela, clama para a montanha. A terra responde-te, a terra submete-se à tua força monstruosa. Mas não abro a janela e olho apenas. À luz pálida do céu, a neve estende-se ao limite dos meus olhos com a sua alvura doce de leite.

Vergílio Ferreira


Imagem copiada daqui


A medição do tempo foi sempre uma preocupação dos homens. Com justeza.

Desde cedo, poder prever as cheias que se verificavam para o cultivo das terras, para além de compreender as razões desses acontecimentos, era uma questão de sobrevivência quando nos tornámos sedentários. Depois de olhar as estrelas, saber do sol o seu arco, periodicamente aumentando ou diminuindo, é imenso o historial que nos permite hoje controlar ao segundo o momento exacto em que numa determinada cidade do país, numa rua determinada, num determinado multibanco, procedemos ao levantamento de uma quantia determinada. Saber os nossos passos.

E o tempo de cada um de nós. O dia em que nascemos, os anos que percorremos, o século completado já para alguns, a esperança de vida, tudo é controlado ao milímetro. Não será excessivo? É mesmo possível referenciar alguém pelos anos de vida quando o cérebro se mantém disposto a cumprir com a eficiência esperada as solicitações de cada dia, os desafios, os sonhos mais altos ainda em mente? Não tenho a certeza.

Há muitas palavras que se mantêm eivadas de sentidos que não correspondem exactamente ao significante usado. Referindo-se uma pessoa como velho, ele até pode não ser antigo, pode nem ter muitos anos contados e o adjectivo é dolorosamente pejorativo. Para o jovem que se comporta como tendo mais idade e para o menos jovem que vê a palavra ligada a algo de indesejável. Mais do que isso, execrável. Como se todos nós não caminhássemos para velhos a velocidade estonteante. Mau é contarmos os anos. Nem havia necessidade, agora que as operações plásticas de todos os tipos mostram de nós aquilo que desejamos. Sem dúvida que, quem se submete a tais cirurgias é porque decerto se sente diferente por dentro e nenhum velho se prestaria a isso. Se o faz é porque é jovem, independentemente dos anos que tem.

Há muitos velhos por aí. De corpo, de espírito e de graça.

Eu gosto dos velhos.

segunda-feira, maio 05, 2008

Olhares de um mesmo continente

«Alors elle découvrit un autre spectacle, l’autre versant du cessez le feu, la débâcle pied-noir. Les quartiers français sentaient l’abandon. Un grand nombre de villas étaient fermées, cernées par le silence. Quelques retardataires erraient encore, derniers fantômes d’un monde emporté par les dévastations de l’histoire. Leurs visages disaient leurs cauchemars. Leurs yeux paraissaient vouloir la mort comme une délivrance. La mort pour eux ou pour les autres, ceux sur les visages desquels ricanait la revanche. La mort pour tout ce qui leur était arraché de leur passé.»

Malika Mokeddem



O acto de ler é uma forma de ver.

E a escrita é tanto mais atraente quanto desnuda.

Ler é olhar pela janela a chuva caindo em fios grossos embaciando o ar, riscando os vidros, avivando as cores, lustrando as folhas, gotejando alegre nos beirais. É sentir que há frio do outro lado das janelas triplas onde a brancura da paisagem reflecte um sol que não aquece.

A riqueza da escrita provém da capacidade de surpreender. Olhar as palavras escritas é procurar até encontrar uma ponta de fio no âmago de um novelo de lã e ir puxando até desmanchar aquela construção elaborada. No final, outra obra se ergueu, os fios reordenaram-se de outra maneira, tricotados por agulhas, tecidos por outras mãos.

Cada um de nós é também um enovelado e desvendar os espaços do outro é conhecer os meandros que nos tecem e nós tecemos. É conhecermo-nos melhor, sabendo o que esteve do outro lado da barricada, a forma como nos olharam, a forma como nos diz estarmos do lado certo ou errado.

Encontrei desde há tempo (por mão amiga destes espaços), uma escritora brilhante, mulher fascinante que se despe dignamente dos seus atavios, partindo de um olhar sobre uma natureza árida e seca. Agreste. Sob todos os véus que lhe cobriam o corpo, os sentidos desvendaram o mundo longe, escutando a liberdade dos nómadas, provando o sabor das letras, esbracejando para não se afogar na submissão da mulher numa sociedade falocrática.

Os seus livros, para além de constituírem um libelo desafiando as leis do Alcorão que reduzem a mulher à função única de procriar, relatam com assinalável lucidez os movimentos sociais da independência da Argélia. A debandada dos pieds-noirs e dos judeus, as perseguições e injustiças dentro da «Algérie aux Algériens!» proclamada por De Gaule.

Como pano de fundo um olhar sonhador sobre as dunas, as reverberações de luz nas areias escaldantes, o cheiro das tâmaras maduras a apetecerem-lhe a reentrada do ano lectivo.

Molika Mokeddem é hoje médica urologista em Montpellier.

A escrita é o seu amant du coeur.