segunda-feira, junho 30, 2008

Os lugares dos homens


Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas…

Ruy Belo





Três décadas depois do regresso, o saudosismo não me diz nada.

O tempo cobre tudo com um manto diáfano. Como a hera recobre já as ruínas da casa defronte, um resto de telha nos beirais, o interior a céu aberto. O telhado que sobra, pasto das ervas, de musgo no inverno, tem um sabor a quietude, solidão mansa, silêncio, respeito. A janela pequena fechada com tábuas já enegrecidas, a erva crescida balouçando ao vento, adornando as pedras de granito dos alicerces que a erosão desvendou.

É um cofre pousado no fim do arco-íris, donde brotam as cores fantasmagóricas onde cabem todas as memórias. Onde os mortos são vida, os sorrisos afagam, os risos ecoam e as lágrimas escorrem, nas faces, na vala, na lagoa, no rio.

Deixemos que seja assim.

Porque a vida continua.

No poste de fios que a civilização ergueu, um milhafre curioso arruma as asas e espera. Escuta os pardais em brigas de encantamento, descuidosos. Há um casal de rolas arrulhando no pinheiro longe, uma ou outra andorinha cruzando o céu, e só o pisco astuto se alarma e avisa o predador.

Tudo se aquieta agora porque a tarde chega ao fim.

O vento sopra refrescando o dia.

A noite cai, serena.

quinta-feira, junho 26, 2008

Protelar

É tempo de ração.

Tempo da Sagrada Comunhão.

Tempo de milagres.

Tempo de partilhar a hóstia com toda a humanidade.

Ou pelo menos é o que Lorbeer diz e Justin finge escrever no seu bloco, num esforço vão para fugir à opressiva boa vontade do seu guia. É tempo de observar «o mistério da humanidade, o mistério do homem corrigindo efeitos da maldade do homem» que é mais uma desconcertante sentença…

John Le Carré


Adiar é uma palavra que não deveria constar do vocabulário.

É feroz, sob uma capa de alívio, comodidade. Como o pelo liso e macio do predador, o seu jeito manso e elegante, não esconde um olhar atento e penetrante com que observa a presa. E espera.

Adiar está muito para além das conversas de travesseiro, o amigo que devemos consultar em todas as circunstâncias. Não tomar uma decisão em cima da hora, sem consultar o travesseiro, é um risco. Adiar uma decisão, é um perigo.

Adiar uma resolução já tomada, uma decisão fundamentada, um facto que sabemos inevitável, é não só uma atitude irresponsável, como arriscada. Em todas as circunstâncias.

Sabermos que o deserto ameaça eminentemente uma grande parte do território que habitamos e nos habituámos a chamá-lo nosso e continuarmos a sobrepor, à necessidade urgente de se tomar medidas no que toca a reflorestação com a qualidade requerida, o aspecto puramente económico do betão e do eucalipto, é um suicídio anunciado.

De nada vale acusarmos sucessivos governos de inoperância; operemos nós. Cada um de nós.

A isso chama-se consciência.

Educação.

sábado, junho 21, 2008

Solstício de Verão


       Diz tudo isso a toda a gente
               que ainda se lembra de mim.
               Diz-lhes. Diz-lhes
               grita-lhes
               aos ouvidos
               ao vento que passa
               e sopra nas casuarinas da Praia Morena.
               Diz aos mulatos e brancos e negros
               que foram nossos companheiros de escola
               que te escrevo este poema
               chorando de saudade
               as veias latejando
               o coração batendo
               de Esperança, de Esperança
               porque ela
               a Esperança
               (como dizia aquele nosso poeta
               que anda perdido nos longes da Europa)
               está na Esperança, Amigo.

Ernesto Lara Filho



O sol chega de manso anunciando o Verão.

Os dias longos e quentes a gritar pelas águas mornas do mar da minha infância. Aquelas madrugadas cálidas a espantar em correrias a miríade de pequenos caranguejos que se deslocavam num rumor só comparável a palavras de amor sussurradas. O sol ainda não, mas a claridade intensa, as ondas mansas, as conchas coloridas cobrindo a areia, os dongos dos pescadores vogando embalados, outros quietos na praia. A cabana de madeira na Samba, o cesto mágico com pão quente e frascos de compota, argolas cobertas de açúcar a segurar a manhã.

Mãos segurando as nossas em carícia terna. E os pés na água depois as pernas, o corpo inteiro mergulhando, apagando tudo o que não fosse a sensação de prazer intenso, a entrega ao ambiente donde não devêramos ter saído.

E o sol subindo devagar.

A maré descendo, deixando algas, deixando marcas como degraus em curva, espaços lisos para escrever já sonhos. Sonhos que o mar apaga nas letras da areia, nos versos rasgados, nas cartas de amor, na fúria da vida.

Hoje, dia do solstício de Verão, cumpri uma parte de mim.

Só por isto, tudo o mais valeu a pena.

terça-feira, junho 17, 2008

Inexoravelmente

No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

Álvaro de Campos

Hoje, a noite chegou para mim de forma diferente.

Fui lá fora e olhei o céu, procurei as estrelas. Olhei o sul, talvez sueste.

Uma nuvem alongada e escura repousava quieta um pouco acima do horizonte e a lua branca, quase redonda, olhou-me serena, seráfica, afastando aos poucos os flocos brancos que a encobriam. Leu nos meus olhos a pergunta, as perguntas sem resposta. E ficou ali comigo aquietando-me quando tentava lembrar quando conheci o Rui.

Não sei, não me recordo. Quando eu nasci, já a sua companheira de quase cinquenta anos cirandava lá por casa, amiga preferida de meu irmão. Crescemos juntas, ela a menina sensata e doce que me era indicada como exemplo de compostura numa infância em que partilhámos tudo na terra longínqua que nos serviu de berço.

A continuação dos estudos na Metrópole. Obrigatoriamente.

Casaram nos Jerónimos, o copo-de-água em Carcavelos. Não sei a data.

Sei que levei a baptizar-lhes o primeiro filho, o Pedro, ao Sr. Bispo na Sé em Nova Lisboa, com meu irmão (que idade tens, Pedro?).

O meu irmão já não vai poder fazê-lo, mas eu, amanhã, vou estar convosco.

Vou levar a enterrar o Rui.

sexta-feira, junho 13, 2008

Segredos das Belas-Artes


Não é a primeira vez que trago a este espaço o escritor que repetidamente me honra com palavras amáveis de incentivo à minha produção escrita.

Dedicado também às artes plásticas que vem divulgando na blogosfera, em Construpintar e Desenhamento, Rocha de Sousa prendeu-me pela sensibilidade da sua escrita em «Angola 61», a crónica de uma guerra em que participou, e onde eu pude encontrar descrições emocionantes de lugares e gentes com quem partilhei grande parte da minha vida, na terra em que cresci.

Depois de ler «A Culpa de Deus», voltei a encontrar uma escrita séria e acutilante, mas leve e agradável no desvendar de «segredos», muros adentro do antigo convento de S. Francisco, em Lisboa, onde o autor também se entregou a uma vida de estudo e dedicação.

Este livro acaba de ser lançado no mercado e é um testemunho vivo de uma das faces da nossa Revolução dos Cravos, a revolução cultural que tarda em cumprir-se.

Aqui deixo, transcrito, um pequeno excerto da obra agora publicada.




«A morte das regras, as falsas alternativas de escolhas destituídas de sustentabilidade, a face social absorvida apenas pelo seu reverso, essas foram, entre egoísmos vários, o caminho lateral do chamado processo revolucionário, imagens ilusórias da conquista da verdade, risco, riso, fonte de prazeres e de vinganças. A disciplina dos comportamentos colectivos desfazia-se como as velhas palavras dos velhos académicos, entre contradições tidas por redentoras. Os mais resistentes, moral e fisicamente, chegavam aos lugares de trabalho na hora certa, para o trabalho ponderado, mas encontravam salas ainda vazias ou habitadas, na sombra, por dois ou três alunos. A vontade política dos governantes, instituindo o ensino artístico na universidade, as Escolas de Lisboa e Porto, viera no limite dos papéis expostos, abrira novos dossiers, pensara tarde a modernidade dos anos 60. Durante treze anos o próprio país envelhecera descompensadamente e o laxismo das pessoas, das repartições, dos organismos públicos, na torção da pirâmide, esbatera o perfil antigo da nossa história, desertificara paisagens e corações, apagara no quadro preto a luxuriante geometria de uma identidade nacional, de um destino. O país fugia de si mesmo, confinado a metrópoles de betão e vias rápidas, e o sentido quotidiano das coisas era cada vez mais redutor, entre o desemprego e a alucinação do consumo.»

quinta-feira, junho 05, 2008

O fogo e a vida

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Carlos Drummond de Andrade






Entre a flor e o fogo, eu prefiro a flor. Pela cor, pelo odor, pela alegria, pela compostura. Mas o que mais me atrai é o fogo.

Também pela cor, pelo bailado da chama, mais pela dor do crepitar, pelo calor, pela quietude tornada brasa. Depois a cinza, ainda quente, a seguir morna, e finalmente pó, cavalgando o vento. Assim todos os seres viventes têm um ciclo a cumprir.

Entre os humanos, a organização das sociedades visou, desde os primórdios, a melhoria de vida das populações. A partilha de serviços responsabilizou cada um, formando uma cadeia de elos a não quebrar. As religiões tiveram aí um papel preponderante enquanto detentoras de um poder espiritual e a ciência avançou quebrando todas as peias, singrando as águas e voando nos céus. Encontrou o negro, para além do azul, no espaço sideral.

Lá em cima, o brilho das estrelas faz esquecer tudo o resto. Cá em baixo, assediados pela ferrugem, os elos enfraquecem. O peso é enorme. Seis mil milhões e meio depois, parece chegar por aí o número mágico de todos os «seis», a atingir neste ano de 2008. Alguém vai nascer e atingir esse número. Um novo Anjo da Luz?

E o ouro negro submergindo tudo.

Qualquer dia o nosso planeta já não é azul.

domingo, junho 01, 2008

Ritual de Verão

«Há coisas que se podem aprender com um velho cão. À medida que os meses passavam e as enfermidades aumentavam, Marley ensinou-nos acima de tudo a lidar com a inexorável finituide da vida. Jenny e eu ainda mal entráramos na meia idade. Os nossos filhos eram pequenos, éramos ambos saudáveis, os nossos anos de reforma, uma perspectiva insondável e distante. Teria sido fácil ignorar o medo inexorável da idade, fingir que ela pudesse passar por nós incolumemente. Mas Mas Marley não permitiria que nos déssemos a esse luxo.

Enquanto o víamos ficar grisalho, surdo e caquético, não havia como ignorar a sua mortalidade – e a nossa. O envelhecimento toca-nos a todos, mas no caso de um cão, fá-lo com uma rapidez que é ao mesmo tempo empolgante e ponderosa.»

John Grogan, «Marley e Eu»




Depois da tosquia que não agrada nem um pouco...





Ei-lo reduzido aos mil e oitocentos gramas de peso.



No Inverno há mais sossego!