domingo, agosto 31, 2008

Culturas


Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra

Não tenho a a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


António Ramos Rosa



terça-feira, agosto 26, 2008

Cansaço


(…) Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.


Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis



Os amigos que comigo de mãos dadas saltaram décadas, estão todos velhos. Mergulhando já na idade dita terceira, vá lá saber-se a razão desse nome, quando me vejo eu própria, na primeira de muitas coisas. Não direi as mais importantes da vida, mas muito importantes. Impensáveis há uns tempos largos. Inusitadas.

Somos aquela geração que viveu a outra guerra fria, os mísseis ali em Cuba, a guerra colonial, fomos descolonizados, retornados poeticamente a uma terra que alguns nem sequer conheceram antes, inseridos, emigrados, unidos pela voz de um Portugal imenso, que não cabe neste rectângulo do mapa. Como não cabe no túmulo o grito de Camões «o dia em que nasci moura e pereça», como a voz de Pessoa não cabe nos Jerónimos.

Unidos pelas memórias. «A minha cabeça está cheia de recordações e hoje, vasculhando o meu missal, dei com esta coisa linda (um «santinho»), lembras-te? Qual a data? Creio em que no ano em que fui para o colégio em Sá da Bandeira e recebi-o com uma carta que a freira chamada “Camila” – que na altura superintendia a carneirada – depois de eu a ler, retirou-ma com a proibição de eu responder. Muitas lágrimas correram e eu sem entender nada. Como o mundo é e foi sempre MAU!» Desabafos, mágoas, intolerâncias. Revolta.

A idade não desarma a dureza da vida de que ela é um vírus mutante, mas amacia se conseguirmos ver e não só olhar, sentir que o mundo mudou e nós também temos de nos adaptar para sobreviver. Os mais de quarenta anos de vida em comum nem sempre é salvo-conduto para a felicidade quando os interesses divergem – se não divergiram sempre – pelas experiências não comungadas, pelos tombos mal digeridos, pelas recusas, pela fortaleza que cada um de nós cimenta nos cacimbos galgados.

Nem a natureza nos acolhe – pedras quebradas, nuvens que já não trazem chuva, alguns de nós erguidos ainda, altaneiros – cada vez mais dura, mais agreste, mais revoltada. Com os novos, com os velhos, com o micróbio humano, esse microrganismo impuro que a si próprio tira o alimento que mina a saúde do planeta, lhe suga o sangue e não repõe sustento. Somos aquela geração de gente que ainda grita contra a voracidade crescente de riqueza, que clama contra a violência e a fome que não teria razão de existir se os homens fossem humildes perante a natureza e os outros.

Se os homens não fossem realmente MAUS.

quarta-feira, agosto 20, 2008

Convicção

 

Na ardência da palavra
A pele gretada, o sulco sobre a terra.
Mater no húmus da espera
O som da semente. O odor lento.
O caminho. Esta fraga de dor
Despenhada sobre o tempo...

Apenas a águia (ou o corvo branco)
Se atrevem na voragem
Deste horizonte....

Quem colhe a manhã que teima
Na brisa dos dedos?

Quem de tão néscio se obriga
A caminhar ignorante da água
E do lume no interior da pedra?
Quem nesta brida se atreve além
Do curto olhar do dia?

Como se chama fosse o voo da ave
Saturnina...

Herético



Há momentos em que a percepção do mundo nos chega com uma clareza inusitada.

Na vastidão da praia mansa e viva, os corpos bronzeados despidos na orla da praia, esguios circulando de sorriso fácil, o pontão além, aquela sucessão de tábuas entrando pelo mar, fervilhando de gente logo pela manhã. Crianças subindo aos magotes pela única escada que se ergue das águas transparentes, mergulhando logo em seguida, pujantes de vida, risos misturados ao marulhar das ondas. Os barcos, pequenos batéis que chegam com um atum, depois um peixe-vela, uma dourada, logo amanhados e mãos recolhendo as cabeças enormes, quem sabe a refeição aguardada para uma família. Também os ovos de tartaruga. E as pequenas logrando o oceano, escapando aos predadores do ar, nem sempre aos humanos, mau grado a vigilância dos guardas.

Ouço aquele homem dono do mundo, senhor da ilha, das ilhas – poliglota, parente de todos os políticos, debitando cultura aos turistas, democracia, Mandela, Luther King, ideais do mundo, dos não brancos, recordando uma América onde não teve lugar – sob as tamareiras, palmeiras empurrando-se sobre hibiscos coloridos, cachos de aloendros e alegrias brancas semeadas de lilás. Palmas oferecendo-se ao vento, em leque, em setas ponteagudas, em longas saias balouçando qual havaianas em dança de vénias. Cactos e folhas carnudas de sisal apontando o céu, alguma outra verdura, sensitivas fechando envergonhadas do sol que nos obriga a cerrar os olhos à reverberação que o mar reflecte em ondas puríssimas. Um ou outro veleiro de proa apontada à praia a revelar o descer da maré. Pela noite, Luci cantando a esperança de nos terra num sorriso bonito, timbrado a doce, debaixo das acácias frondosas.

Penso então o meu lugar dentro de mim, as praias bonitas repletas de gente, o clima ameno, os rios de encanto riscando o solo em meneios, as gentes enrugadas nas casas de granito, pedra sobre pedra, esquecidas, perdidas num tempo que já não lhes pertence. Que os novos têm outros prazeres de convívio onde a natureza não tem lugar. Portas adentro, o ruído não é trovoada a anunciar tempestade, o líquido não cai do céu, não molha o corpo, jorra do vidro, do plástico, entra na alma, incendeia e queima. Nem há granizo que se desmanche em água, há saraiva que se faz em pó, a apagar memórias.

Há falta de brio em Portugal, obviamente.

E não só nos atletas.

terça-feira, agosto 12, 2008

Morabeza


Todos os dias agora acordo com alegria e pena.

Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.

Tenho alegria e pena porque perco o que sonho

E posso estar na realidade onde está o que sonho.

Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações.

Não sei o que hei-de ser comigo sozinho.

Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.

A.Caeiro



Tocam de mim, para mim, todos os sinos do mundo.

Da terra cresce a minha anhara imensa, mais agreste, mais nua, mas soando ao meu continente.

É antes uma paisagem lunar: imensidão de areia e pedras vulcânicas, escuras, semeadas por todo o espaço até o horizonte surgir com a imagem precisa de uma pirâmide. Depois o mar.

No ar um cheiro vazio, feito de mar e de sol, um bafo quente como o odor de um corpo que é o nosso. Porque há gentes, há olhares doces, há suavidade no trato, há vozes que cantam as melodias do som, só porque falam em sorrisos que encontram os nossos. Os olhos não se esquivam, antes afagam, comovem, trazem lágrimas doces de outros lugares. Os lugares que vivem dentro de nós porque não há morte para o amor que ainda pulsa.

O vento sopra dobrando as acácias sem flor, levando rasteiro o vapor quente que nasce do chão e se desfaz em água brilhante num esplendor de miragem.



E o sal. O sal da Ilha do Sal tem as tonalidades róseas do deserto. Tem poder curativo – dizem – tal a concentração na lagoa imensa represada. É para mim outro fausto sob um sol inclemente, outro ainda o olho azul que se avista nas profundezas da gruta na rocha alta, aberta sobre o mar.



Compreendo o inconformismo dos outros, de alguns outros. Só quem sabe vestir-se de mar consegue suportar a humidade colada à pele, o ardor do sol, o ar quente.

Hei-de voltar, mesmo grãozinho de pó cavalgando a areia.