Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastouEsse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Miguel Torga
O sol corre baixo no alpendre, rasando o grelhador que espreita por entre os troncos das roseiras já sem folhas, braços esqueléticos oferecidos à geada das noites longas.
Assim manda o tempo de Natal, os dias curtos para dar de comer ao gado, para cuidar das couves para a Consoada, para os doces de abóbora e as filhós. O termómetro sobe e marca mais baixo a humidade; o casal idoso da casa defronte inicia o passeio curto, que permitem as suas pernas alquebradas pelo reumatismo de tantos invernos já contados. Na cidade, a preocupação é outra: as compras, os presentes, os enfeites para a árvore, as luzes, as bolas de cores brilhantes, as roupas para estrear.
As datas são o esteio dos homens na procura e marca da sua identidade. A Natividade, festejada em Dezembro ou Janeiro, celebra a família cristã e a dádiva, simples partilha do que cada um pode dispensar do que tem, sem ostentação. Os Reis Magos, porque reis, trouxeram ouro, incenso e mirra e à manjedoura; os pastores, ofertas humildes de mel e frutos para o Menino.
Este Natal aparece-me marcado por duas mulheres que interpretam o Natal à luz de uma tonalidade que me fere os olhos, tal a intensidade com que me chegou. Uma delas é senhora de um reino de fadas que resiste e persiste, tendo a seu serviço na casa quatro centenas de empregados. Passando uma imagem de rigor e respeito pela crise que assola o seu reino, esqueceu a necessidade de ajuda ao consumo interno e mandou que se comprassem as ofertas, para os seus estimados súbditos, na China, onde o trabalho de crianças possibilita a preservação da sua assinalável fortuna pessoal. A outra cumpre judiciosamente o seu dever na Magistratura num outro reino que é o nosso e retira o direito ao Natal em família a uma menina de seis anos, entregando-a sinistramente a um desconhecido.
Hoje vou ajudar a acender a fogueira. Vou ajudar a manter o fogo pela noite adentro. Vou escutar o que me diz a sabedoria das chamas.
Feliz Noite de Natal!