sexta-feira, abril 24, 2009

Os cravos de Abril


Liberdade, liberdade

Quem na tem chama-lhe sua

Eu não tenho liberdade

Nem p’ra pôr um pé na rua

Quadra popular




Liberdade é uma palavra longa e esbelta. Tem quatro sílabas para se espreguiçar na boca e é bonita de pronunciar.


Mais difícil será explicá-la e mais ainda utilizá-la, usufruir dela. Parece fácil mas não é.


À partida, liberdade aparece como aquela varinha mágica que possibilita tudo o que desejamos, mas logo a seguir percebemos que não é bem assim, ela acaba bem perto, quando invadimos a liberdade do outro. Pessoa, bicho, planta. Até uma pedra. Quando se é professor por quatro décadas, fica-se com a ideia de que liberdade é muito mais dar do que receber. Dar liberdade, ensinar a liberdade, isso é liberdade, a que nos dá prazer e aos outros. Se soubermos dá-la, se nos adaptarmos à liberdade dos outros, mantemos a nossa e não nos beliscamos. Ensinar liberdade é falar de deveres e não só de direitos.


E quando no presente se impõem deveres e se coarctam direitos, se reivindicam direitos e não se cumprem deveres, se as instituições – a Justiça principalmente – que asseguram a liberdade, não funcionam com a celeridade e a independência que a democracia lhes confere, quando aqueles que foram eleitos para defender os nosso direitos – na Assembleia da República – usam o direito que lhes demos para o usarem apenas em proveito próprio, a liberdade fica sem poiso.


Estas considerações não tiram o lugar ao Dia da Liberdade que está a chegar. Um grande dia para os portugueses, visto de muitas perspectivas e bem diferentes. Eu queria aqui congratular-me pelo facto de ter sido o dia em que acordámos para outorgar a liberdade a todos os povos dos países que hoje procuram manter-se de pé, outros começam a erguer-se, periclitantes, poucos ainda se afirmam já com orgulho de terem com Portugal uma História comum.


A Revolução dos Cravos é um nome que permanece e nos deve encher de orgulho.


Os cravos do nosso Abril são vermelhos e deviam ser distribuídos, soltos por aí, por todas as ruas, e quem os cultiva deveria libertá-los para quem passa. A cor é de festa, de paixão e de sangue. Festa porque aconteceu, paixão porque apaixonou os homens tanto da guerra como do povo, sangue porque ele correu em todas as frentes. Poderia ter sido evitado.


Ficam os cravos para nos fazer recordar.




domingo, abril 19, 2009

Humildade

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões





As primaveras são a aspiração de todos os invernos, porque em cada nova estação há um reviver de alma.


Há sempre asas novas cortando os céus e uma cor abrindo no chão escuro, no tronco carcomido, um bolbo esquecido na terra de repente abrindo um olhar ao sol. Há sempre uma lareira que se apaga, serena, esperando o desejo dos homens, pronta a dar calor ao mais leve apelo, ainda na suavidade do Outono, o fim de todas as primaveras.


Nascer na força da estação que corre pode ser um privilégio. Pode ajudar a combater a hostilidade que assola em todas as frentes, pode dar força a uma estratégia que a natureza ensina, brotando em cor nos troncos secos, na pedra nua, no deserto mais seco, desembrulhando folhas, rasgando a terra, a um tempo soberba e humilde.


Humilde porque brota no chão rasteiro sob os pinheiros altos, porque sabe estar presa à terra e olha as aves mais alto ainda, porque escuta os segredos dos insectos que a visitam. Soberba porque tem sonhos que voam longe e tem cor e tem vida dentro de si, tem o alimento que as abelhas, as borboletas procuram.


Olha à sua volta e sabe que a chuva nem sempre desenha arco-íris no céu.


domingo, abril 12, 2009

O Dia Esperado







Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além , por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas…
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
O meu coração puro, imaculado e santo
Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,
Para toda a nudez um pano do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto
E para todo o crime o seu perdão de Pai!...
………………………………………………
A minha mãe faltou-me era eu pequenino,
Mas da sua piedade o fulgor diamantino
Ficou sempre abençoando a minha vida inteira
Como junto dum leão um sorriso divino,
Como sobre uma forca um ramo de oliveira!

Guerra Junqueiro


sábado, abril 04, 2009

Assomo

Sou eu que me vergo ao domínio.
Que me poise a marca incandescente na testa.
Tocará na meninge como num cofre.
Aceito coroas para depor sobre mim.
Deixo os pés do abeto empurrar
com a biqueira violetas. A fragrância
delas leva-me a imaginar poemas
em branco. Depois de percorrer um longo encadeamento
de sílabas sou outra. Vejo assomar a natureza nua.


Fiama Hasse Pais Brandão




Escrever é ficção.


É sempre ficção e ao mesmo tempo profundamente verdadeiro porque não há como destrinçar folha e verso de uma finíssima folha de papel. Na primeira ou terceira pessoa tudo o que se escreve passa pelo filtro dos sentidos de quem o regista, pura imaginação embora.


É uma forma de entrega. Um abrir de portas que convida ao repasto, à partilha, à identificação com o sentir de quem lê, tanto mais apetecível quanto próximo, porque mais ou menos condimentado, porque agradável aos olhos na sua composição, melodia, trama, arte.


O perpassar de emoções nem sempre tem a ver com o momento da escrita, antes com as sensações aspiradas em factos, recentes ou longínquos, algo tão leve e tão breve como o roçar da brisa na água límpida e quieta. Basta então um agitar de vento, um reflexo, uma imagem, um som, para soltar a correnteza, logo depois do dique derramada em brancuras de espuma que é preciso aquietar numa corrente outra vez mansa e sustida. Procurando o leito por entre as penedias, as colinas, espraiando-se em margens de riqueza ímpar, desaguando no mar ou afundando nas areias como o Cubango (Okavango) se afunda no Kalahari.


Onde nem há primavera.