segunda-feira, dezembro 26, 2011

Permanecer


Nos nossos dias, as pessoas atiram-se a tudo o que alguma vez foi escrito para o transformarem em filme, em série de televisão ou em banda desenhada. E como o essencial, num romance, é o que só pode ser dito por um romancista, em qualquer adaptação só fica o inessencial. Quem foi suficientemente louco para continuar hoje a escrever romances, tem de os escrever, se quiser garantir protecção dele, de tal maneira que não possam ser adaptados, por outras palavras, que não possam ser contados.
Milan Kundera in «A Imortalidade»



Escrever um romance tem sempre uma apresentação narrativa e uma narrativa tem por suporte alguma forma de história, histórias, de vida ou ficcionadas, sempre histórias de algum modo construídas, paralelas, sobrepostas, separadas no tempo ou no espaço pelas mais variadas condicionantes. A banda desenhada ou o audiovisual, são outras formas de apresentação narrativa, daí o romance poder ser convertido, na sua totalidade ou em parte, numa destas variantes de narrativa.

Esta preocupação de autor registada acima, faz-me lembrar a situação actual da nossa construção europeia, faz-me lembrar o episódio do Velho do Restelo, faz-me lembrar o Acordo Ortográfico, faz-me lembrar o medo intrínseco que mora cá dentro. Faz-me lembrar o medo legítimo de perdermos a nossa identidade.

A história dos homens, da humanidade, a História com maiúscula, a história humilde de cada um de nós, prova que a identidade é uma força que se constrói arrostando o medo, o medo que segue à nossa frente como a lebre nas corridas de atletismo, fazendo-nos correr mais depressa precisamente na construção, no fortalecimento da nossa identidade.

O medo do Velho do Restelo não dizimou as vidas, não acabou com um país entalado entre a terra e o mar, acossado por um continente, antes o projectou no mundo inteiro e lhe deu grandeza, acrescentou valor. O Acordo Ortográfico de 1923 receou o desaparecimento do trema em Portugal (no Brasil só agora) receou que o «tranquilo» perdesse a calma e alterasse a fonética, o que não aconteceu; o novo Acordo vai permitir a união pela língua de uma comunidade que vai a caminho dos 300 milhões de falantes e é indubitavelmente uma mais-valia ainda pouco explorada, mas de potencialidades sem tamanho. A nossa integração total numa Europa comum só nos pode engrandecer, só nos molda ainda mais a identidade, o orgulho de um país diferente, coeso, com fronteiras definidas a caminhar para um milénio, recheado de História, repleto de genes aventureiros que deixaram a marca da língua pelos quatro cantos do mundo, que florescem hoje aqui e além, na Ciência, nas Artes, marcando a nossa identidade, sem fronteiras. Apesar da crise.

Voltando aos livros, as grandes obras não deixam de o ser pelo facto de serem mediatizadas através do teatro, do cinema, da televisão, de folhetins de BD, em adaptações adulteradas sempre, ainda que valorizadas porque chegam mais longe. A palavra escrita mantém-se um registo inalterado da vida de um escritor.

quinta-feira, dezembro 22, 2011

A cave



Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
 
Fernando Pessoa


Acho que perdi a voz.

Não vou ouvir este ano o crepitar da fogueira mansa na Noite mais longa, já sem chama a lamber os troncos grossos e informes. Da gruta incandescente emanando o calor das décadas, o fumo escrevendo no ar frio o nome dos ausentes que permanecem nas conversas dos que se quedam parados, curvados do peso dos anos, um ou outro riso, uma imprecação na hora de dar mais vida ao fogo. Quando as memórias de alargam, sobem no espaço do tempo que passou e galgam oceanos, continentes, a crescer o sentido de pertença a um povo, uma identidade, a ideia do regresso ao ninho de que partimos antes de nós.

Cresce a lembrança daqueles que depois nasceram longe, os que não fugiram, os que arrostaram a guerra e lutaram pela terra, os que foram fustigados, maltratados, castigados pela cor da pele, os que lutaram por um ideal de solidariedade, os que quiseram dar as mãos, os que foram persistentes até ao limite – para alguns a morte. Anos, décadas volvidas, a força da chama apagou-se devagar, ficou o calor que não morre senão depois das cinzas. Também esses, poucos, voltaram à terra dos seus pais, também eles pousaram no ninho antigo, prostrados diante da fogueira secular.

A crise apregoada bateu-me enfim da maneira mais dura.

Continua a haver os troncos grossos, as raízes altas e secas, continua a haver o tractor e o motorista para os transportar. Continua a haver o espaço. Ainda há braços suficientemente fortes para acender e alimentar a fogueira na noite fria. Mas falta a vontade dos Homens, quem sabe o calor dos afectos.

Na voz de Caeiro, hoje, só Pessoa me diz.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.  
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.  
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.  
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...  

segunda-feira, dezembro 12, 2011

À espera de Godot

Moi quand je serai vieux
tout sera encore mieux
Même si j'ai plus qu''une dent
j'en grincerai joyeusement
Elle mordra dans la vie
avec la même envie
Même si j'ai plus qu'un cheveu
je le peignerai de mon mieux
J'irai lhe cheveu au vent
je prendrai du bon temps
je ferai des projets
des projets d'avenir
Et si ma mémoire m'oublie j'en profiterai
pour oublier de mourir


 1º Prémio num concurso do Metro de Paris, Pierre Bichaud




Acordo dentro do nevoeiro, a chuva o frio lá fora e cá dentro o meu corpo grita de desconforto.
Decididamente não fui programada para uma natureza longamente agreste, sem a doçura de alguma luz abrindo a janela que ainda mantém os vidros, frágeis, mas onde a humidade chora por dentro em sulcos que escorrem como lágrimas. O abandono, o desafago, o desprazer, a desesperança, a solidão, tudo me ocorre em sopetão no calor da casa.

Ouço dizer que os ricos não querem falar do muito que possuem, menos ainda dividir com aqueles que têm pouco. As pessoas, as famílias, os concidadãos, os estados, os países do mundo. Mas ocorre-me pensar se todos os que realmente têm pouco – ou os que nada têm – desejam por acaso a riqueza dos outros. É que, para além de eu ter a certeza de haver quem não deseje, resta ainda descortinar o que significa ter muito ou ter pouco, qual é o modelo, quem é que define, quem estabelece os limites, que limites. 

E neste afã de tentar encontrar respostas que não existem, está subjacente uma ideia de hierarquia que as religiões logo usurparam do inconsciente humano, a existência de alguém que nos possa orientar quando o nevoeiro desce sobre o mundo, sobre nós. Se queremos caminhar e não estamos sós, por que não dar as mãos e seguir, na certeza de que, se algum cair, o outro, os outros, não deixarão que aquele se afunde no abismo?

Por que não acreditar na nossa força de crescer e seguir em frente em vez de ficarmos sentados à espera de um ente supremo, um qualquer D. Sebastião?

 

segunda-feira, dezembro 05, 2011

Pulsar

Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio
Nada me impede, me impele,
Me dá calor ou dá frio
Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada
Vejo os rastros que ele traz
Numa sequência arrastada
Do que ficou para trás
Vou vendo e vou meditando
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando…
Fernando Pessoa


 
Não sou capaz de levantar voo no mar encapelado em que me debato para não submergir. Sinto-me um albatroz desajeitado sem saber como e para onde estender as asas, com tanto ar acima, com tanto espaço para se sentir dono do mundo em redor.

Há sempre momentos destes em que, se por um lado nada nos impede de sair da letargia em que mergulhámos mercê de condições que nos são estranhas, nada nos impele também a abandonar o remanso imposto pelo cansaço. É difícil reagir quando todas as condicionantes são adversas a qualquer alteração, quando tudo parece tão natural acontecer nesta pobreza de espírito em que tudo é suficiente, sem esforço nem é preciso alimento, sem fome o cheiro da comida traz náusea.

É o rio a passar devagarinho, a levar com ele as memórias da fonte que lhe deu vida, a alegria de ser um regato alegre a serpentear entre campos, depois a saltar entre pedras, em rápidos e cachoeiras, a despenhar-se de muito alto e a reviver sempre espargindo arco-íris a brincar com o sol. E seguir em frente, a caminho da foz, o mar à espera no abraço final, já não mais rio, já não mais doce, já seduzido pelo oceano em vagas ondulantes, vogando na eternidade.

Eu vejo sempre o rio a passar, não me esqueço de o ver ondear, de o ouvir sussurrar, de sentir-lhe a frescura, de pressentir-lhe a imensidão quando as chuvas permanecem por dias sem conta.

O meu rio é fiel e eu sei, sou, o caminho dele.

sábado, novembro 26, 2011

A Terceira Guerra


Não houve decerto a gota que fez transbordar o vaso, mas o simples reconhecimento de que tinha já transbordado. Aconteceu foi que a humanidade em geral se modificou e no quadro universal a persistência no logro a denuncia como logro. Um novo equilíbrio se instaurou no modo generalizado de se ser humano por sobre o desgaste do anterior, e o erro denunciou-se como a ausência do cómico da graça de que ríramos ou da sedução da mulher que amámos.
Virgílio Ferreira in «Pensar»


Ontem ouvi o Fausto soando pelas Montanhas Azuis, o mesmo Fausto que conheci na sua juventude, dedilhando a guitarra no final de curso liceal, num espaço de Portugal antigo, nos idos sessenta do outro século.

Ontem ouvi falar do percurso de um país de quase 900 anos de História, um país de diáspora, um país que pulsa em arritmias de crises mal curadas, incapaz de tomar decisões próprias, saudosista eterno dum Sebastião diluído no nevoeiro dos séculos, sujeito aos Wellington e Beresford, sem se dar conta que existe em cada um de nós aquela gota de água capaz de formar um curso de água, capaz de formar um rio, capaz de afastar por largos quilómetros a fúria do mar pintando-o de barro, como o Zaire ou o Amazonas.

Por querer ou sem querer, estamos em guerra. Não uma guerra de trincheiras, não uma guerra de aviões e torpedeiros, não uma guerra de catanas e canhangulos. Digo de uma outra Grande Guerra, saída do século novo, uma guerra de números, num terrorismo novo, comandado por agências ditas de rating. E não é uma guerra leal.

O dia apaga as cores devagar quando a noite vem. É a hora mágica do acender das fogueiras eternas de todos os lugares da Terra, onde o lebréu de aquece e os pensamentos dos Homens passam a uma nova dimensão.



domingo, novembro 13, 2011

Continuidade


Contava-se uma anedota acerca do meu pai, que era músico. Encontrava-se ele algures com uns amigos, quando, provindos de um rádio ou de um gramofone, ecoam os acordes de uma sinfonia. Os amigos, todos eles músicos ou melómanos, reconhecem imediatamente a Nona de Beethoven e perguntaram ao meu pai: «Esta música é o quê?» E ele, após uma longa reflexão: «Isso parece ser Beethoven.»
Milan Kundera in «A Cortina»



Os conselhos dos velhos perdem-se pelas décadas tempestuosas da vida, lembrados fugazmente, respeitados raramente, mas marcando a presença deles quando um dia há tempo para recordá-los, tarde da vida.

Olha, minha filha: não te deixes por lá ficar em casa; se o teu marido te convidar a ires ver um burro pendurado pelo rabo, vai ver o burro pendurado pelo rabo!

Pode ficar ciente de que não esquecerei o conselho, tomado na devida conta, mas não esquecerei, avozinha!

Como não esqueceu o avô, que se perdia pelo jogo e queria a neta a jogar bridge, mas ela sempre embirrava com «o morto» quando lhe calhava em sorte. Afinaria a inteligência e a concentração, mas o jogo sempre lhe parecera uma perda de tempo. No xadrez segue os cavalos, minha filha, segue os cavalos!

A mãe e os avisos surgindo a todo o propósito, com segundas intenções: segura a malha, minha filha, segura a malha, se a perdes é um trabalhão ir buscá-la!

Que dizer agora aos mais novos quando há um sol que se sente coado pelas cinzas que cobrem este céu, há um calor meigo na tarde quieta a falar de mansinho, a dizer que vai embora porque é outro tempo, é o tempo das neves brancas na serra, da geada a cobrir os campos pelas madrugadas frias? Que dizer quando as cores esmaecidas das folhas anunciam os esqueletos esguios das árvores em prece além de que a primavera as vai ouvir? Que dizer quando eles já sabem tudo, que dizer mais, senão que as estações se sucedem, se renovam, se pintam de cores, se desfazem em cor de terra, parece que tudo arde e de repente a chuva acontece?

terça-feira, novembro 08, 2011

C’est la Rose l’Important


 
A realização deste casamento, bem como a sua validade, tem sido alvo de controvérsia e polémica desde o século XV até à actualidade, até porque, a ter existido, podia ter alterado o rumo da sucessão ao trono após as Cortes de Coimbra de 1385 e, consequentemente, o rumo da História. A diferença de opiniões começa logo no próprio século XV, com os cronistas que escreveram sobre este período. Assim, se para Rui de Pina é ponto assente que Pedro e Inês casaram, embora tivesse havido quem levantasse algumas dúvidas porque

«não fez esta declaração logo como reinou, mas daí a três anos, & porém ele a este tempo, a mandou daí em diante chamar, & intitular, Rainha de Portugal e a seus filhos Infantes»

já Fernão Lopes desacredita as palavras do rei ao achar muito pouco provável

«que um casamento tão notável e que tantas razões tinha para ser lembrado, houvesse em tão pequeno espaço de esquecer, assim àquele que o fez co o aos outros que foram presentes, não lhes lembrando o dia nem o mês.»

Ana Rodrigues Oliveira, in «Rainhas Medievais de Portugal»




Tem de haver grandeza na humildade da perda. 

Aos vencedores o pódio, a glória, o champanhe derramado, as primeiras páginas dos jornais, o lugar mais alto nos escaparates dos livros, o nome inscrito na galeria, na rua duma cidade qualquer, um busto numa praça, num jardim. Aos perdedores, a glória de se terem batido com os maiores, a coragem da luta e o reconhecimento da sua falta de zelo.

Parece que Napoleão conviveu com um homem grande na arte da liderança, da mobilização em torno de um objectivo, um homem que ele não estimava particularmente, mas a quem reconhecia as qualidades que lhe faltavam. Esse homem foi Talleyrand, e o segredo do seu sucesso para a motivação e empenho dos seus colaboradores, estava precisamente na condenação do excesso de zelo. Chegou a dizer que no zelo entram sempre três quartas partes de estupidez.

É que a falta de zelo não é sinónimo de incúria. É tão só desvalorizar aquelas pequenas coisas que fazem a diferença entre os que agitam a garrafa no pódio e os que recebem os salpicos na hora da glória. Há os que são sempre vencedores porque são zelosos e o seu nome, obra, fica gravado na taça. Depois há os outros, os sem nome gravado, senhores de uma obra sua, grande porque sim, que não cabe na estreiteza da placa, na estreiteza de um nome.

Nem é sem motivo que Fernando Pessoa não conseguiu SER inteiro sem os múltiplos heterónimos, ele, que em vida nunca subiu ao pódio.

domingo, outubro 30, 2011

A lei da educação


Para ser grande, sê inteiro: nada
teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa
 



Conta-se pela Net uma história passada na Noruega, onde um empregado, ao inspeccionar uma câmara frigorífica ao fim do dia, não evitou que a porta se fechasse e ele ficasse preso dentro dela. Ninguém ali voltaria antes do dia seguinte, pelo que a morte o esperava naquela câmara frigorífica. Porém o vigilante da empresa foi resgatá-lo a tempo. Ao ser-lhe perguntada a razão de ter ido abrir a câmara de frio, o que não fazia parte das funções que lhe eram atribuídas, ele explicou: «Trabalho nesta empresa há 35 anos e, de entre as centenas de empregados entram e saem aqui todos os dias, é o único que me cumprimenta ao chegar e se despede quando sai. Esta manhã corrrespondi à sua saudação, mas não dei por que saísse e estranhei. Por isso o procurei, imaginando que pudesse ter acontecido alguma coisa de anormal.»

Vem isto a propósito de me ter chegado às mãos um livro de uma senhora australiana que tem por título «As Boas Maneiras Ainda São Importantes?» Ela questiona precisamente a oportunidade de se observarem e cultivarem as boas maneiras na actual conjuntura da falta de tempo que assola as populações na vida moderna. A autora faz um périplo por momentos marcantes da história do homem: o primeiro aperto de mão dos primitivos num sinal de que não tinham armas, o tempo de Péricles e a importância da cultura e boas maneiras para a aprovação geral entre pares dentro da comunidade ateniense por oposição à bélica cultura espartana, a imposição de normas de etiqueta na corte de Versailles ao tempo de Louis XIV, refere a utilidade das ordens religiosas na formação do auto controlo do indivíduo ao longo dos tempos.

Com propriedade, a autora conclui que a falta de educação se vai colmatando com leis. Leis cada vez mais restritivas, impostas, redutoras de liberdade, leis essas que não são aplicadas, não são aplicáveis e por isso acabam por diminuir o poder e a reputação da Lei, como tal. Tudo seria mais fácil se os gestos fossem naturalmente generosos em observação de simples normas de educação.

É afinal globalizado este sentimento de falta de educação que se vai institucionalizando em nome da modernidade, da falta de tempo, do trabalho, do afã do dinheiro, das férias, da ocupação de todos os momentos da existência em coisas ditas úteis e inadiáveis. Sem tempo para a paz, para pensar, para olhar, para sentir. Sem tempo para a comunidade, para a solidariedade, para simplesmente descansar. Porque a vida é tão longa.