sexta-feira, julho 29, 2011

Regresso

Eu sei como respira. Não soubesse,
ou docemente em mim não respirasse,
e mesmo assim de amor eu ouviria,
dormindo ou acordado, o eco naqueles poços
do amor que me rodeia e toca, enchendo-os
com mais fervor que a vida, mais ternura, mais
carinho, e com silêncio, lágrimas, sorrisos,
e sobretudo, ah sobretudo, numa só mão que pousa.
Jorge de Sena, em 27/1/59
Pela manhã, no quintal, a frescura ainda da madrugada na coloração que o sol depõe na linha rasa que atravessa os campos, os troncos da oliveiras velhas, as copas dos sobreiros, um ou outro pinheiro entortado pela solidão no castigo do vento.

Por trás dos vidros da janela, as orquídeas sorriem à luz que as acaricia, cada flor em ramos arqueados, oferecendo-se em entrega total ao calor que se adivnha. Dentro da casa, a mão humedece e aduba, entreabre o cortinado, cerra a persiana, não vá o ardor do sol tirar-lhes o viço.

As flores, como os filhos. Ornamentando os espaços a exalar perfume, derramando a cor e a vida. Mas a face voltada para o apelo do sol e do futuro, o olhar perdido no longe, preso à luz que vem de fora.

Na memória da pele que as rega e afaga, as rugas escrevem as histórias de cada primavera, da chuva que fustiga as janelas e escorre pelos vidros, das luzes que rasgam o céu e acordam o troar da terra. As rugas cada vez mais fundas que guardam segredos de amores vadios, de sombras coladas, de espaços roubados, veredas achadas, caminhos perdidos.

O regresso enfim à paz consentida, conseguida, guardada no entulho que sobra da vida.

quarta-feira, julho 20, 2011

Desassossego



 Senti o gosto da mortalidade na minha boca e nesse momento compreendi que não ia viver para sempre. Demoramos muito tempo a aprender isso, mas quando finalmente aprendemos, tudo muda dentro de nós, um tipo nunca mais volta a ser o mesmo. Eu tinha dezassete anos e, de uma forma absolutamente inopinada, compreendi – sem qualquer espécie de dúvida – que a minha vida era só minha, que a minha vida me pertencia a mim e a mais ninguém.
«É de liberdade que estou a falar, Fogg. De liberdade. Um sentimento de desespero que se torna tão imenso, tão esmagador, tão catastrófico, que uma pessoa só tem uma alternativa – ser libertada por ele. É a única hipótese. Enfim, claro que há outra, que é um tipo enfiar-se num canto e morrer.»
  
Paul Auster in «Palácio da Lua»

 
Outrora era uma palavra bonita, agora já não se usa. Outrora éramos jovens de corpo e a alma entontecia sem pouso num alvoroço que nem se dava conta de existir. Agora a alma quer ser jovem mas o corpo afunda-se em mediocridades que não queremos aceitar, agora que a alma se rege ainda pelas noções de outrora, com mais perícia nos sentidos, mais ponderação, mais controle das sensações quando elas invadem os espaços em que não cabem.

O outrora não existe. Paira quieto no coração de alguns, daqueles que têm passado, daqueles para quem o passado é a raiz que não negam, daqueles para quem o passado é o princípio da construção de nós. Mas são cada vez mais poucos.

Eu penso que os novos – e os velhos – têm medo da franqueza da sua origem. Meu pai tinha apenas a quarta classe. Meu pai era comerciante e filho de lavradores, como consta na sua certidão narrativa. Meu pai era respeitado. Alguns pais de colegas meus eram médicos, ou advogados, ou engenheiros e por isso se achavam superiores. E alguns não eram respeitados. Razões haveria para um e outro caso, outrora. Que agora já não contam essas razões, eu acho. Dizia-me então meu pai que no tempo do Império Romano, o deus Mercúrio (e Hermes, já antes, na Grécia), era o protector dos viajantes, dos mercadores, dos comerciantes e dos ladrões. Mas também o deus da eloquência e da inteligência, ele era o mensageiro dos deuses. Muito ágil, era representado com asas, jovem e esbelto. À minha interrogação muda explicava que os comerciantes eram normalmente associados aos ladrões e daí o mesmo deus para os proteger.

Mas hoje não há viajantes nem mercadores nem comerciantes nem ladrões, há empresários e banqueiros. E é claro que nem tudo o que parece, é. Outrora já era assim, agora é muito mais assim, ou pior. O que parece, não é mesmo. Também eu não sou o que pareço. Ou sou?

segunda-feira, julho 04, 2011

Logro


Ah fidelidade, coisa humilde, coisa que não basta,
coisa que não vive, como te chamo flor?
O sol e o ar sobre a cidade passam.
Do alto as pombas na cidade pousam.
Como te chamo flor?
Como até nisto eu posso atraiçoar-te?
Jorge de Sena



A escrita e a leitura cumprem uma relação de fidelidade que se alimenta uma à outra, da outra.

A fidelidade à escrita advém da fidelidade à leitura e desta aos escritores, aos livros impressos, aos jornais, aos panfletos da política e religião, aos papéis velhos, amarelecidos, enrolados, atados, que nos fazem contar os anos decorridos, aos escritos nas paredes sem sentido, com sentido, sentidos, desenhados, velados, fechados, rasgados como gritos.

A fidelidade às palavras, a fidelidade às coisas, a fidelidade às pessoas. Dizendo a palavra muitas vezes, pegando nela como se de um objecto se tratasse, palavra como coisa, voltando-a, torcendo-a, lendo-a ao contrário, pegando-lhe por uma ponta e deixando-a deslizar para baixo como um enfeite, balançá-la como um pêndulo, a páginas tantas ela desaparece. Afinal não é mais que um nome abstracto. Não existe definido, não é palpável, é maleável e leve como a nuvem que paira em cada manhã sobre o horizonte.

Só posso afinal ser fiel a mim própria, àquilo que sou, ao que me fiz e me transformei. Não sou igual em cada dia que passa, Eu cresço e multiplico-me e diversifico-me a cada instante, as células cada vez mais raras tentando a fidelidade ao que já nada é.

O poeta chama-lhe flor. E ainda assim atraiçoa-a.