terça-feira, dezembro 24, 2013

NATAL NOVO

No caminho onde pisou um deus
há tanto tempo que o tempo não lembra
resta o sonho dos pés
                                            sem peso
                                            sem desenho.

Quem passe ali, na fracção de segundo,
em deus se erige, insciente, deus faminto,
saudoso de existência.

Vai seguindo em demanda do seu rastro,
é um tremor radioso, uma opulência
de impossíveis, casulos do possível.

Mas a estrada se parte, se milparte,
a seta não aponta
destino algum, e o traço ausente
ao homem torna homem, novamente.

Carlos Drummond de Andrade





Pousa sobre a noite da Consoada um vento feroz, fustigando tudo o que se atreve a colocar-se-lhe na frente. O vento senhor de uma vontade sem freio, Eolo passado à história, não há deuses que o segurem.


Aos homens fenece a vontade de erguer a fogueira que em tempo foi farol das gentes do lugar, foi farol para mim de um tempo já quase sem memória. 


Alterar rotinas tem de ser o nosso destino terrestre, um dia pediremos contas aos deuses quando nós fizermos parte do Olimpo, já sem corpo, e vivos apenas enquanto alguém de entre os que ficam deixar religiosamente aquele cálice e o vinho generoso aberto para que possamos descer ao ninho antigo. 


Para que possamos silenciosamente trazer um pouco de paz aos que estão inquietos, para que possamos enxugar o pranto que desce pelos olhos enrugados, o pranto que ilumina os olhos já baços. 


Para que possamos abençoar os meninos novos.

sexta-feira, novembro 22, 2013

TEMPOS NOVOS


Ah! quando eu voltar...
Hão-de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:
               
Voltei!...
Alda Lara

Fotografia retirada da Net



Nasci em África. Na cidade mais linda do grande planalto do centro de Angola, a cidade que não foi aldeia ou vila, já nasceu cidade para ser a capital do Império.

Império, que nome grandioso para um país tão pequeno. Também a Inglaterra, não mais que uma ilha, continua a manter o sonho que não é mais do que isso. Doris Lessing, a escritora a quem foi proposta há alguns anos a honra de se tornar Dame do Império, declinou o título, por negar a existência de qualquer império. Parece inquestionável que o único império que se mantém é o da Língua de um e outro país, semeada pelo mundo, e unificadora na sua variedade.

Portugal viveu em África na memória dos que por lá deitaram raízes, pelos motivos mais diversos. A minha geração cresceu a ouvir falar dos vinhedos e dos soutos, da cor das folhas da oliveira, cresceu na esperança de um dia conhecer o Mondego, as varinas, usar capa e ouvir tocar Paredes, cantar o Zeca Afonso, o Góis, o Camacho. Lisboa era toda ela um monumento, o Algarve não existia. A civilização estava aqui e nós estávamos lá por acidente. Aquilo não era terra «para um cristão viver», os funcionários do Estado tinham direito a uma licença «graciosa» com viagens pagas, para vir recompor a sua saúde durante seis meses em cada quatro anos, seis meses sempre alongados para um ano completo.

A nossa liberdade de jovens começava no dia do embarque para a Metrópole. O princípio da liberdade e o fim do sonho, o acordar para a vida que nada tinha a ver com aquilo que os outros diziam, a sensação estranha de sermos estranhos, a crescer então a capacidade de olhar do alto e perceber como somos grandes e tão fortes para podermos sobreviver entre nós, Portugueses. Porque é certa a dificuldade de sobrevivência em muitos aspectos, apenas porque somos Portugueses, dada a nossa incapacidade para compreendermos e aceitarmos os que são mais do que nós, os que se afirmam depois por méritos lá fora, tantos da Ciência e da Arte e do Desporto, ilustres desconhecidos ou depreciados cá dentro e, mais do que isso, inaceitados por uma maioria cada vez mais inculta, inaceitados pela generalidade dos que são menos dotados.

E são esses menos dotados que gerem agora o destino dos que ficam, condicionados pelo fascínio do dinheiro, repetindo do exterior o que aqui não tem lugar, surdos ao pulsar das gentes, indiferentes ao sofrimento e à angústia dos que não têm qualquer saída. Portugal não é um país pobre. Pobre de espírito é quem governa para as elites pisando o povo.

quarta-feira, outubro 23, 2013

ONTEM



Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles.
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!
Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.
Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?
Alberto Caeiro


Olhar para ontem não é despiciendo. É, aliás, a avaliação que todos devemos fazer de quando em vez, não vá o tempo passar mais depressa do que o pensamento e assim termos alguma surpresa nem sempre agradável, como pressupõe - quase sempre - a própria palavra surpresa.

Olhar para ontem (título da mais recente crónica de ALA, na revista Visão) é um exercício de reflexão a requerer uma isenção de jornalista, que nunca é total, todos sabemos como o ser humano é incapaz de olhar do alto sem ser coordenado por insondáveis desígnios de personalidade, caldeada por genética, educação, consciência. Recordo o exemplo estafado daquela abóbora que cresceu mais do que o esperado por terras da Gália e cuja notícia calcorreou os principais jornais do país, do Le Figaro ao Le Monde, Libération ou L'Humanité. Desde a explicação científica da família das curcubitaciae, passando pelos encómios à qualidade da indústria agrícola, à sublimidade das terras e do clima, até à exaltação do trabalhador empenhado, a planta foi sendo colocada no pódio em primeiro, segundo ou terceiro lugar consoante o título do periódico.

O resultado final de olhar para ontem, o objectivo conseguido, depende do estado de espírito do momento. Pode o olhar magoado repousar nas memórias da infância e encontrar o lenitivo para o inconformismo actual, pode a revolta estremecer os alicerces e encontrar a caliça, os cacos, as ruinas carcomidas pela humidade, cobertas de musgo e de silvas, na melhor das hipóteses já os frutos enfeitando as hastes, a madressilva perfumando tudo. Porém, atrás de tudo, no escuro das plantas, no silêncio dos buracos negros, quem sabe o pulsar das agonias, o sofrimento das crueldades sofridas ou o castigo dos remorsos. Pode ser apenas o espinho do preconceito, a picada do sarcasmo, a punição injusta, o medo que gera impotência, aquela dor mansa que atravessa as décadas e se mantem inesquecível no fundo dos tempos.

Foi ontem que o mundo se abriu em decisões precisas, logo depois os cortes, os golpes que condicionaram essas decisões, outros rumos traçados, as separações, os lutos, as vidas novas, as pegadas na terra molhada de lágrimas. 

E hoje a chuva que acalma, a chuva, a água que tudo renova.